sexta-feira, 29 de maio de 2015

Insetos do Espelho Parte I - Capítulo III - Alice Através do Espelho

EVIDENTEMENTE A PRIMEIRA COISA A FAZER era um levantamento completo da região que iria atravessar. “É muito parecido com estudar geografia”, pensou Alice, erguendo-se nas pontas dos pés na esperança de conseguir ver um pouco mais longe. “Rios principais… não há nenhum. Montanhas principais… estou em cima da única, mas não me parece que tenha nome. Cidades principais… ora, o que são aquelas criaturas fazendo mel ali? Abelhas não podem ser… quem já enxergou abelhas a um quilômetro de distância?” E ficou em silêncio por algum tempo, observando uma delas que se alvoroçava entre as flores, fincando-lhes o probóscide, “exatamente como uma abelha comum”, pensou Alice.
No entanto, aquilo era tudo menos uma abelha comum: na verdade era um elefante… como Alice logo descobriu, embora de início a ideia a tenha deixado completamente sem fôlego. “E que flores enormes devem ser aquelas!” foi o que pensou em seguida. “Como se fossem cabanas sem teto e com hastes… e que quantidade de mel devem produzir! Acho que vou descer e… não, ainda não”, continuou, contendo-se quando já começava a correr morro abaixo, tentando arranjar alguma desculpa para ficar tão precavida de repente. “Não vai adiantar nada descer até eles sem um galho jeitoso, comprido, para tangê-los… e como vai ser engraçado quando me perguntarem se gostei do meu passeio. Vou dizer: ‘Ah, gostei muito…’” (aqui deu sua sacudidela de cabeça favorita), “‘só que estava tão quente e poeirento, e os elefantes incomodavam tanto!’” 
“Acho que vou descer pelo outro lado”, disse após uma pausa; “e talvez possa visitar os elefantes mais tarde. Além disso, quero tanto chegar à Terceira Casa!” 
Com essa desculpa, desceu o morro correndo e saltou por sobre o primeiro dos seis riachinhos.
“Passagens, por favor!” disse o Guarda, enfiando a cabeça pela janela. Num instante todos estavam empunhando passagens: eram mais ou menos do tamanho das pessoas e pareciam encher completamente o vagão. 
“Vamos lá! Mostre sua passagem, criança!” prosseguiu o Guarda, olhando irritado para Alice. E uma porção de vozes exclamou ao mesmo tempo (“como o refrão de uma canção”, pensou Alice): “Não o faça esperar, criança! Ora, o tempo dele vale mil libras o minuto!” 
“Sinto muito, mas não tenho passagem”, Alice disse, atemorizada; “não havia guichê lá de onde vim.” E o coro de vozes recomeçou: “Não havia lugar para uma pessoa lá de onde ela veio. A terra lá vale mil libras o centímetro!” 
“Não me venha com desculpas”, disse o Guarda; “devia ter comprado uma do maquinista.” E de novo o coro de vozes se ergueu com: “Com o maquinista. Ora, só a fumaça vale mil libras a baforada!”
Alice pensou consigo: “Se é assim, não adianta nada falar.” Dessa vez as vozes não a acompanharam, já que ela não falara, mas, para sua grande surpresa, todas pensaram em coro (espero que você entenda o que significa pensar em coro… porque devo confessar que eu não entendo): “Melhor não dizer nada. A fala vale mil libras a palavra!” 
“Vou sonhar com mil libras esta noite, tenho certeza!” pensou Alice. Durante todo esse tempo o Guarda estava olhando para ela, primeiro através de um telescópio, depois com um microscópio e depois com um binóculo. Finalmente disse: “Você está na direção errada”, fechou a janela e foi embora. 
“Uma criança tão pequena”, disse o cavalheiro sentado diante dela (a roupa dele era de papel branco), “deveria saber em que direção está indo, mesmo que não saiba o próprio nome!” 
Uma Cabra, que estava sentada junto ao cavalheiro de branco, fechou os olhos e disse alto: “Ela devia saber como chegar ao guichê, mesmo que não saiba o bê-á-bá.” 
Havia um Besouro sentado perto da Cabra (tratava-se de um vagão com passageiros muito esquisitos), e, como a regra parecia ser que cada um falasse de uma vez, ele continuou com: “Ela vai ter de ser despachada de volta como bagagem.”
Alice não podia ver quem estava sentado na frente do Besouro, mas em seguida uma voz rouca falou, num tom grosseiro: “Trocar de locomotivas…” — e nesse ponto engasgou e foi obrigado a parar.
“Parece que é um cavalo”, Alice pensou. E um fiozinho de voz disse, perto do seu ouvido: “Você podia fazer uma piada sobre isso… algo sobre ‘cavalo’ e ‘cavalice’, não é?”
Depois uma voz muito meiga disse à distância: “Será preciso lhe pregar uma etiqueta ‘Mocinha. Cuidado, é frágil’.
Depois dessa, outras vozes se fizeram ouvir (“Quanta gente neste vagão!” pensou Alice), dizendo: “Deve ir pelo correio, pois está selada…” “Deve ser enviada como uma mensagem pelo telégrafo…” “Deve puxar o trem ela própria pelo resto da viagem…” e assim por diante. 
Mas o cavalheiro vestido de papel branco curvou-se e lhe sussurrou no ouvido: “Não ligue para o que estão dizendo, minha cara, mas compre uma passagem de volta cada vez que o trem parar.” 
“De jeito nenhum!” disse Alice, um tanto impaciente. “Nem sei o que estou fazendo nesta viagem de trem… agora mesmo estava num bosque… e gostaria de poder voltar para lá!” 
“Você poderia fazer uma piada com isso”, disse a vozinha ao pé do seu ouvido; “algo como ‘querias mas não podias’, não é?” 
“Pare de caçoar assim”, disse Alice, olhando em volta sem conseguir descobrir de onde vinha a voz; “se está tão aflito por uma piada, por que você mesmo não faz uma?” 
A vozinha deu um suspiro profundo. Estava muito infeliz, evidentemente, e Alice lhe teria dito uma palavra de consolo, “se pelo menos suspirasse como as outras pessoas!” ela pensou. Mas aquele foi um suspiro tão assombrosamente pequenininho que nem o teria escutado se não tivesse sido dado bem junto do seu ouvido. A consequência foi que sentiu muita cócega no ouvido, e a infelicidade da pobre criaturinha desapareceu da sua cabeça. 
“Sei que você é uma amiga”, a vozinha continuou: “uma amiga querida e uma velha amiga. E você não vai me ferir, embora eu seja um inseto.” 
“Que tipo de inseto?”, Alice indagou um pouco apreensiva. O que realmente queria saber era se picava ou não, mas lhe pareceu que essa não seria uma pergunta muito polida. 
“Ora, então você não…”, começou a vozinha, quando foi abafada por um apito estridente da locomotiva, e todos deram um pulo de susto, inclusive Alice. 
O Cavalo, que tinha posto a cabeça para fora da janela, recolheu-a calmamente e disse: “É só um riacho que temos de saltar.” Todos pareceram satisfeitos com a explicação, embora Alice tenha se sentido um pouco nervosa à simples ideia de trens saltando. “De todo modo, ele vai nos levar para a Quarta Casa, já é um consolo!” disse para si mesma. Um instante depois sentiu que o vagão estava subindo pelos ares e, no seu pavor, agarrou o que estava mais perto da sua mão, que calhou ser a barba da Cabra. 

Mas a barba pareceu se dissolver quando ela a tocou, e Alice se viu sentada tranquilamente sob uma árvore… enquanto o Mosquito (pois esse era o inseto com quem estivera conversando) se balançava num ramo bem em cima da sua cabeça e a abanava com as asas. 




Insetos do Espelho Parte II - Capítulo III - Alice Através do Espelho

Era certamente um Mosquito muito grande: “mais ou menos do tamanho de uma galinha”, Alice pensou. Mesmo assim, não podia se sentir nervosa com ele, depois de terem estado conversando por tanto tempo. 
“…então não gosta de todos os insetos?” continuou o Mosquito, tranquilo como se nada tivesse acontecido. 
“Gosto deles quando sabem falar”, disse Alice. “Lá de onde eu venho, nenhum deles jamais falou.”
“Que tipo de inseto lhe agrada mais, lá de onde você vem?” o Mosquito indagou. 
“Insetos não me agradam”, Alice explicou, “porque tenho bastante medo deles… pelo menos dos grandes. Mas posso lhe dizer os nomes de alguns.” 
“Claro que eles atendem pelo nome, não é?” o Mosquito comentou irrefletidamente. 
“Nunca soube que o fizessem.” 
“De que serve terem nomes”, disse o Mosquito, “se não atendem por eles?” 
“Não serve de nada para eles”, disse Alice, “mas é útil para as pessoas que lhes dão nomes, suponho. Senão, para que afinal as coisas têm nome?” 
“Isso eu não sei”, respondeu o Mosquito. “Lá longe, no bosque, elas não têm nome nenhum… seja como for, diga lá sua lista de insetos — está perdendo tempo.” 
“Bem, tem a mosca”, Alice começou, contando os nomes nos dedos. 
“Certo”, disse o Mosquito, “no meio daquele arbusto ali você vai ver uma ‘moscavalo’, se olhar bem. Não sossega, passa o dia se balançando de galho em galho.” 
“Ela come o quê?” Alice perguntou com grande curiosidade. 
“Seiva e serragem”, disse o Mosquito. “Prossiga com a lista.” 
Alice olhou para a moscavalo, muito interessada, e concluiu que tinha acabado de ser repintada, tão reluzente e pegajosa parecia; e continuou.
“Há também a libélula.” 
“Olhe para o galho em cima da sua cabeça”, disse o Mosquito, “e vai ver uma Libélula-de-natal. Seu corpo é de pudim de passas, as asas de azevinho, e a cabeça é uma passa flambada ao conhaque.” 
“E ela come o quê?” perguntou Alice, como antes. 
“Manjar-branco e pastel de carne”, o Mosquito respondeu; “e faz seu ninho na árvore de Natal.”
“Então há a Borboleta, Alice continuou, depois de ter dado uma boa olhada no inseto com a cabeça em chamas e pensado consigo mesma: “Desconfio que é por isso que os insetos gostam tanto de voar para as velas… vontade de virar libélulas-de-natal!” 
“Rastejando aos seus pés”, disse o Mosquito (Alice encolheu os pés um tanto assustada), “você pode observar uma Borboleteiga. Suas asas são fatias finas de pão com manteiga, o corpo é de casca de pão, a cabeça é um torrão de açúcar.” 
“E o que ela come?” 
“Chá fraco com creme.” 
Uma nova dificuldade surgiu na cabeça de Alice: “E se ela não conseguisse encontrar nenhum?” sugeriu. 
“Nesse caso morreria, é claro.” 
“Mas isso deve acontecer com muita frequência”, Alice observou, pensativa. 
“Sempre acontece”, disse o Mosquito. 
Depois disso, Alice ficou em silêncio por um minuto ou dois, refletindo. Nesse meio tempo o Mosquito se divertia dando voltas e voltas em torno da cabeça dela, zumbindo. Finalmente sossegou e fez um comentário: “Você não quer perder o seu nome, não é?” 
“Não, de jeito nenhum”, disse Alice, um pouco agoniada.
“No entanto, não sei”, continuou o Mosquito num tom displicente: “pense só como seria conveniente se você conseguisse ir para casa sem ele! Por exemplo, se a governanta quisesse chamá-la para estudar, ela diria ‘venha cá…’ e teria de parar por aí, porque não teria nenhum nome para chamá-la — e, é claro, você não teria de ir, entendeu?” 
“Isso nunca daria certo, tenho certeza”, disse Alice. “Nunca passaria pela cabeça da governanta me dispensar do estudo por causa disso. Se ela não lembrasse do meu nome, me chamaria de ‘Senhora!’, como as governantas fazem.” 
“Bem, se ela dissesse só ‘Senhora’”, o Mosquito observou, “você diria que está sem hora e não iria estudar… É uma piadinha. Gostaria que você a tivesse feito.” 
“Por que desejaria que eu a tivesse feito?” Alice perguntou. “É um trocadilho infame.” 
O Mosquito limitou-se a suspirar profundamente, enquanto duas grossas lágrimas lhe rolavam pelas faces. 
“Não devia fazer piadas”, disse Alice, “se isso o deixa tão infeliz.” 
Seguiu-se mais um daqueles suspirozinhos tristonhos, e dessa vez o pobre Mosquito pareceu realmente ter-se desfeito em lágrimas, porque quando Alice levantou os olhos não encontrou mais nada no galho e, como já estava sentindo um pouco de frio por ficar tanto tempo sentada quieta, levantou-se e saiu andando. 
Logo chegou a um campo aberto, com um bosque do outro lado; parecia mais escuro que o último bosque e Alice sentiu um pouco de medo de entrar nele. Refletindo melhor, no entanto, resolveu ir em frente, “pois para trás é que não vou, com certeza”, pensou, e aquele era o único caminho para a Oitava Casa. 
“Este deve ser o bosque”, disse pensativamente, “em que as coisas não têm nomes. O que será que vai ser do meu nome quando eu entrar nele? Não gostaria nada de perdê-lo… porque teriam de me dar outro, e é quase certo que seria um nome feio. Mas, nesse caso, o engraçado seria tentar encontrar a criatura que ficou com meu antigo nome! Igualzinho àqueles anúncios, sabe, quando as pessoas perdem cachorros: ‘Responde pelo nome ‘Dash’; usava uma coleira de latão…’ Imagine ficar chamando todas as coisas que eu encontrasse de ‘Alice’ até que uma delas respondesse! Só que elas não responderiam nada, se fossem espertas.” 
Assim divagava quando chegou ao bosque: parecia muito fresco e sombrio. “Bem, de todo modo é um grande alívio”, disse ao entrar sob as árvores, “depois de sentir tanto calor, entrar sob… o quê?” continuou, bastante surpresa de não conseguir lembrar a palavra. “Quero dizer entrar sob… sob as… sob isto, entende!” pondo a mão no tronco da árvore. “Como é que isto se chama, afinal? Acredito que não tem nome… ora, com certeza não tem!” 
Ficou em silêncio um minuto, pensando. Depois, de repente, recomeçou. “Então, no fim das contas a coisa realmente aconteceu! E agora, quem sou eu? Vou me lembrar, se puder! Estou decidida!” Mas estar decidida não ajudou muito, e tudo que conseguiu dizer, depois de quebrar muito a cabeça, foi: “L, eu sei que começa com L!” 
Nesse instante apareceu uma Corça vagando por ali; olhou para Alice com seus olhos grandes e meigos, mas não se assustou nadinha. “Venha cá! Venha cá!” disse Alice, esticando a mão e tentando afagá-la; mas a Corça só recuou um pouco e voltou a olhar para Alice. 
“Como você se chama?” finalmente a Corça perguntou. Que voz doce e suave tinha! 
“Quem me dera saber!” pensou a pobre Alice. Respondeu, um tanto acabrunhada: “Nada, por enquanto.” 
“Pense bem”, a Corça disse, “esse não serve.”
Alice pensou, mas não adiantou coisa alguma. “Por favor, poderia me dizer como você se chama?” disse timidamente. “Acho que isso poderia ajudar um pouco.” 
“Vou lhe dizer se vier um pouco adiante comigo”, disse a Corça. “Aqui não consigo me lembrar.”
Assim, saíram caminhando juntas pelo bosque, Alice abraçando afetuosamente o pescoço macio da Corça, até que chegaram a um outro campo aberto; então a Corça deu um súbito pinote no ar e se desvencilhou dos braços de Alice. “Sou uma Corça!” gritou radiante, “e, oh! você é uma criança humana!” Uma expressão de susto tomou de repente seus bonitos olhos castanhos e no instante seguinte ela fugiu como um raio. Alice ficou procurando-a, prestes a chorar de frustração por ter perdido sua querida companheira de viagem tão de repente. “De todo modo, agora sei meu nome”, disse, “é algum consolo. Alice… Alice… não vou esquecer de novo. E agora, qual dessas setas devo seguir?” 
Não era uma pergunta muito difícil, já que uma única estrada atravessava o bosque, e as duas setas apontavam para ela. “Vou resolver a questão”, disse Alice consigo, “quando a estrada se dividir e elas apontarem rumos diferentes.”
Mas isso não parecia provável. Andou e andou por um longo tempo, mas sempre que a estrada se dividia lá estavam as duas setas, apontando a mesma direção, uma com os dizeres “POR AQUI — CASA DE TWEEDLEDUM” e a outra “CASA DE TWEEDLEDEE — POR AQUI”. 
“Desconfio,” disse Alice por fim, “que eles moram na mesma casa! Não sei como não pensei nisso antes… Mas não posso ficar muito tempo lá. Vou só dar uma chegadinha, dizer ‘olá, como vão?’ e lhes perguntar o caminho para sair do bosque. Se pelo menos eu chegar à Oitava Casa antes do anoitecer!” Assim foi divagando, falando consigo mesma enquanto caminhava, até que, numa curva fechada, deu de encontro com dois homenzinhos gordos, tão de repente que não pôde evitar dar um salto para trás, mas logo se recobrou, certa.




quinta-feira, 28 de maio de 2015

XXXIII – O Galgo Velho e o seu Dono

Um Galgo velho, que em tempos havia sido muito bom caçador, deixou fugir uma lebre de entre os dentes, porque já os não tinha. Vendo isso, o dono açoitou-o cruelmente e mandou-o embora, como coisa que nada valia.
Disse então o Galgo: 
— Deves, Senhor, lembrar-te de como te servi bem enquanto era jovem, quantas lebres cacei e quanto me estimavas; agora que sou velho e estou no osso, por uma lebre que me fugiu, açoitas-me e lanças-me fora. Devias antes perdoar-me e pagar-me bem o muito que te tenho servido.

Moral da História: A lição deste velho galgo lhes diz como sereis tratados na velhice por aqueles a quem já não mais puderes servir.




XXXII – O Parto da Montanha

Em certo tempo começou a Montanha a dar urros e a inchar, dizendo que queria parir. Andava a gente muito surpresa e cheia de temor, receosa de que nascesse algum monstro que pudesse destruir o mundo todo. Chegado o tempo do parto, estando todos juntos suspensos, a Montanha pariu um Rato, transformando em riso o que antes era medo.

Moral da História: Os que prometem mundos e fundos espantam-nos a final com o nada que dão de si.




XXXI – As Pombas e o Falcão

Vendo-se as Pombas perseguidas pelo Milhafre, que de vez em quando as maltratava, e pensando como poderiam livrar-se dele, pediram ajuda ao Falcão.
Tomou este o cargo de as defenderem; mas começou a tratá-las muito pior, matando-as e comendo-as sem piedade. Vendo-se sem remédio, diziam:
— Sofremos e com razão, pois não nos contentando com o que tínhamos, decidimos mal num assunto que tanto nos importava.

Moral da História: Fujamos de protetores de ofício, especialmente quando são de conhecida avidez e perversidade; caro custa-nos tal proteção.




terça-feira, 26 de maio de 2015

Barba Azul - Charles Perrault

Há algum tempo atrás, havia um homem que tinha belas casas tanto na cidade como no campo, negócios de ouro e prata, rica mobília e carruagens todas adornadas com ouro. Mas esse homem teve o azar de ter uma barba azul que o fazia tão horrivelmente feio que todas as mulheres e garotas fugiam dele.
Uma de suas vizinhas, uma nobre dama, tinha duas filhas, ambas muito bonitas. Ele queria casar-se com uma das filhas, deixando à nobre dama a escolha de que filha seria entregue a ele. Nenhuma das duas o queriam, uma ficava empurrando o casamento pra outra, não suportando a idéia de casar-se com um homem que tinha a barba azul. Para aumentar o desgosto e a aversão que elas sentiam por ele, havia o fato de que ele já havia se casado várias vezes e ninguém sabia o que havia ocorrido a essas mulheres.
Barba Azul, para ganhar a afeição delas, levou-as, com sua mãe, três ou quatro damas de companhia e outros jovens da vizinhança, para uma de suas casas de campo, onde ficaram durante uma semana.
O tempo era ocupado com festas, caçadas, pescarias, dança, alegria e descanso. Ninguém foi dormir, mas todos passaram a noite conversando e brincando uns com os outros. Resumindo, correu tudo tão bem que a filha mais nova começou a pensar que a barba do homem não era tão azul assim e que ele devia ser um cavalheiro muito cortês.
Logo que voltaram para casa, o casamento estava feito. Cerca de um mês depois, Barba Azul disse à sua esposa que tinha que fazer uma viagem importante pelo país e que ficaria fora por pelo menos seis semanas. Ele desejava que ela se divertisse enquanto ele estivesse fora: que mandasse buscar amigos e conhecidos, levasse-os ao campo, se quisesse, e que comesse do bom e do melhor.
"Aqui estão," ele disse,"as chaves para os dois guarda-roupas grandes, onde guardo as melhores peças. Estas são as das louças e talheres de ouro e prata, que não usamos no dia a dia. Estas abrem meus cofres onde guardo meu dinheiro, ouro e prata; estas são do meu esquife de jóias. E esta é a chave mestra para todos os quartos do castelo. Mas esta pequena aqui, esta é a chave do closet que fica no final do corredor no térreo. Pode abrir tudo, pode ira aonde quiseres, exceto no closet. Lá eu a proíbo de ir, e proíbo de tal maneira que se você abri-lo pode se preparar para toda minha raiva e ressentimento."
Ela prometeu obedecer exatamente ao que ele havia pedido. Então, depois de abraçá-la, entrou na sua carruagem e se foi.
Suas vizinhas e amigas não esperaram para ir à casa da jovem esposa. Elas estavam impacientes para ver a rica mobilha da casa e não quiseram ir enquanto o marido lá estava por causa da sua barba azul que muito as assustava. E elas correram por todos os quartos, vestiários e guarda-roupas, e cada uma era mais rico e lindo que o outro.
Depois disso, elas subiram para os dois quartos maiores onde ficavam as maiores riquezas. Elas não podiam admirar suficientemente a quantidade e beleza da tapeçaria, as camas, sofás, mesas e espelhos nos quais podia-se ver dos pés à cabeça; alguns deles tinham molduras de vidro, outros de prata, outros douradas, os melhores e mais magníficos que elas já tinham visto.
Não paravam de exagerar e invejar a felicidade da amiga, que não estava se divertindo muito a olhar todas aquelas riquezas, pois estava impaciente para ver o que havia no pequeno closet do térreo. Sentiu-se tão pressionada por sua curiosidade que, sem considerar que era uma indelicadeza deixar as visitas sozinhas, desceu a pequena escadinha com tanta pressa que quase caiu e quebrou o pescoço.
Chegando à porta do closet, aí se deteve algum tempo, lembrando-se da proibição que o marido lhe fizera e considerando que lhe poderia acontecer uma desgraça por haver sido desobediente; mas a tentação era tão forte que ela não a pôde vencer. Pegou a pequena chave, e, trêmula, abriu a porta do gabinete. A princípio ela não conseguiu ver nada lá dentro, pois as janelas estavam fechadas. Depois de alguns instantes ela percebeu que no chão, que estava coberto de sangue coagulado, havia corpos de várias mulheres mortas, ocupando todo o espaço do closet. (Estas eram todas as mulheres com as quais Barba Azul havia se casado e as quais ele havia assassinado, uma depois da outra). Ela achou que ia morrer de medo, e a chave, que ela tinha tirado da fechadura, caiu de sua mão.
Depois de se recuperar um pouco do susto, ela pegou a chave, trancou a porta e subiu para seu quarto para descansar; mas ela não conseguia, pois ainda estava muito assustada. Observando que a chave estava manchada de sangue, ela tentou duas ou três vezes limpá-la; mas o sangue não saía; em vão ela lavou a chava e até esfregou com sabão e areia. O sangue continuava lá, pois a chave era mágica e ela nunca conseguia limpá-la. Quando conseguia tirar o sangue de um lado, ele voltava no outro lado.
Barba Azul voltou de sua viagem no fim daquele mesmo dia, dizendo que, no caminho, recebera notícias de que o negócio que o levara a partir acabara de realizar-se com vantagem para ele. A mulher fez quanto pôde para se mostrar encantada com esse breve retorno.
Na manhã seguinte ele pediu que ela lhe desse as chaves. Ela as devolveu, mas com as mãos tão trêmulas que ele facilmente percebeu o que havia acontecido.
"Por que" disse ele, "a chave do closet não está junto com as outras?"
"Eu," disse ela, "devo tê-la deixado lá em cima, sobre a mesa."
"Então," disse Barba Azul, "traga-me ela logo."
Depois de muito enrolar, ela foi forçada a levar a chave para ele. Barba Azul, depois de examinar atentamente a chave, perguntou a sua esposa: "Por que a chave está manchada de sangue?"
"Eu não sei," gritou a pobre mulher, mais pálida que a morte.
"Você sabe!" retrucou Barba Azul. "Eu sei muito bem. Você entrou no closet, não entrou? Muito bem, madame; você vai voltar lá e tomar seu lugar junto às outras senhoras que você viu."
Diante disso, ela se jogou aos pés do marido e and implorou seu perdão com todos os sinais de verdadeiro arrependimento, prometendo que nunca mais seria desobediente. Ela teria feito uma rocha derreter-se, tão linda e triste ela estava, mas o coração de Barba Azul era mais duro que qualquer rocha!
"Você deve morrer, madame," ele disse, "e já."
"Já que tenho que morrer," respondeu ela (olhando-o com seus olhos cheios de lágrimas), "dê-me um pouco de tempo para rezar minhas preces."
"Eu darei sete minutos," respondeu Barba Azul, "nenhum segundo a mais."
Quando ela notou que estava sozinha, chamou sua irmã e disse-lhe: "Anne, minha irmã, suba para a torres, eu te peço, e veja se nossos irmãos estão chegando. Eles prometeram que viriam hoje. Se você os vir, faça algum sinal para eles se apressarem."
Anne subiu para a torre e a pobre mulher aflita gritava de tempos em tempos "Anne, minha irmã, vês alguém vindo?"
E a irmã dizia: "Não vejo nada além de uma nuvem de poeira sob o sol e o campo verde."
Neste meio tempo, Barba Azul, segurando um grande sabre, gritou o mais alto que pôde: "Desça agora, ou irei até aí."
"Mais um momentinho, por favor," disse a mulher; e então, bem baixinho ela falou: "Anne, minha irmã, vês alguém vindo?"
E Anne respondia: "Não vejo nada além de uma nuvem de poeira sob o sol e o campo verde."
"Desça logo," gritou Barba Azul, "ou irei até aí."
"Estou indo," respondeu a mulher; e então gritou: "Anne, minha irmã, vês alguém vindo?"
"Eu vejo," respondeu a irmã, "uma grande nuvem de poeira se aproximando."
"São meus irmãos?"
"Oh, não minha irmã, eu vejo apenas um rebanho de ovelhas."
"Você não vai descer?" gritou Barba Azul.
"mais um momentinho," disse a esposa, e então ela gritou: "Anne, minha irmã, vês alguém vindo?"
"Eu vejo," disse ela, "dois homens a cavalo, mas eles ainda estão muito longe."
"Graças a deus," respondeu a esposa. "São meus irmãos. Vou fazer um sinal, o melhor que eu puder, para fazê-lo se apressar."
Então Barba Azul gritou tão alto que a casa inteira tremeu. A mulher angustiada desceu e se jogou aos pés de seu marido, chorando e com os cabelos revirados.
"Isso não significa nada," disse Barba Azul. "Você deve morrer!" Então, segurando os cabelos da mulher com uma mão e erguendo a espada com a outra, ele preparou-se para decapitá-la. A pobre mulher, voltando-se para ele, olhando-o com olhos moribundos, pediu que ele lhe desse um tempinho para ela se recompor.
"Não, não," ele disse, "recomponha-se com deus." e já ia erguendo o braço para cortar-lhe a garganta.
Neste exato momento houve uma batida tão forte no portão que Barba Azul parou de repente. O portão estava aberto e os dois homens entraram. Desembainhando suas espadas, eles se dirigiram diretamente a Barba Azul. Ele sabia que aqueles eram os irmãos da sua esposa, um era um dragão, o outro, um mosqueteiro. Então ele tentou fugir imediatamente para se salvar; mas os dois irmãos o perseguiram e o pegaram antes que ele chegasse aos degraus da entrada. Eles o atravessaram com suas espadas e o deixaram morto. A pobre mulher estava quase tão morta quanto seu marido, e não tinha forças para erguer-se e cumprimentar seus irmãos.
Como Barba Azul não tinha herdeiros, sua mulher tornou-se dona de todos os seus pertences. Ela usou parte destes bens para casar sua irmã Anne com um jovem cavalheiro que estava apaixonado por ela há bastante tempo; outra parte ela usou para comprar títulos de nobreza para seus irmãos, e o resto ela usou para casar-se com um cavalheiro muito bom que a fez esquecer-se do sofrimento que ela passou com Barba Azul.

Moral:
A curiosidade, apesar de seus atrativos, geralmente traz profundo arrependimento.
Para o desgosto de muitas mulheres, essa alegria dura pouco.
Uma vez satisfeita a curiosidade, ela deixa de existir, e sempre custa caro.

Outra moral:
Nenhum marido dos dias de hoje seria tão terrível e cruel mandando sua esposa fazer algo impossível.

Então, seja qual for a cor da barba do marido, a mulher de hoje o mostrará quem é que manda.




As Fadas - Charles Perrault

Era uma vez uma viúva que tinha duas filhas. A mais velha era comumente confundida com sua mãe, tanto elas eram parecidas em personalidade e aparência. As duas eram tão desagradáveis e arrogantes que ninguém conseguia ficar conviver com elas. A mais nova, que era a cara do pai em gentileza e doçura, era portadora de rara beleza. 
A mãe adorava a mais velha, já que se pareciam tanto; e odiava a mais nova com a mesma intensidade. Ela fazia a menina comer suas refeições na cozinha e trabalhar da hora em que o sol nascia até tarde da noite. Uma das tarefas da pobre criança era ir duas vezes por dia buscar água na nascente que ficava a meia milha de distância, trazendo na volta um jarro pesado cheio de água. Um dia, quando ela estava na nascente, uma velha veio e pediu um pouco de água. 
"Claro, senhora," disse a menina. Enxaguou o jarro e buscou pegar água da parte mais limpa da nascente. Entregou o jarro à mulher e ajudou a erguê-lo para que ela pudesse beber mais facilmente. Essa velha mulher era uma fada, que tomou a forma de uma pobre camponesa para ver até onde irira a bondade da menina. 
"Você é tão bonita," ela disse ao acabar de beber, "e tão educada, que vou te conceder um dom", e a fada continuou, "que para cada palavra que você diga uma flor ou pedra preciosa saia da sua boca." Quando a menina chegou em casa, sua mãe a recebeu com broncas por ter demorado na nascente.
"Por favor, me desculpe, mãe," disse a pobre criança, "por ter demorado tanto," e enquanto ela falava essas palavras, três rosas, três pérolas e três diamantes saíram de sua boca. 
"O que estou vendo?" gritou a mãe. "Será que vi pérolas e diamantes caindo de sua boca? O que você fez, minha filha?" (Era a primeira vez que ela a chamava de 'minha filha') A pobre criança contou o que aconteceu, espalhando incontáveis diamantes enquanto falava. 
"É claro!" gritou a mãe. 
"Tenho que mandar minha filha mais velha para lá. Venha, querida. Veja o que sai da boca de irmã enquanto ela fala! Você não gostaria de ter o mesmo dom? Tudo o que precisa fazer é ir à nascente pegar água e, quando uma velha te pedir um pouco de água, você dá a ela gentilmente." "Você quer que eu vá até a nascente?" respondeu a mal-educada garota. "Estou dizendo que você tem que ir," respondeu a mãe, "e agora mesmo!" 
De muito mau humor a garota saiu levando com ela o melhor cantil de prata da casa. Tão logo ela chegou à nascente, ela viu uma mulher vestida majestosamente, que veio até ela e pediu um pouco de água. Era a mesma fada que havia aparecido para a irmã, mas ela estava disfarçada de princesa para ver até onde iria a falta de educação da garota.
"Você acha que vim até aqui só pra pegar água pra você?" disse a garote de maneira rude. 
"Você acha que eu trouxe um cantil de prata até aqui só pra dar água para uma madame? Sim, é bem isso que você pensou! Pegue a água você mesma, se quiser!" "Você não é muito educada," disse a fada calmamente. "Bem, em troca por sua falta de cortesia eu garanto que, a cada palavra que você disser, uma cobra ou um sapo saia de sua boca." Tão logo a mãe viu a filha chegando em casa, ela gritou 
"Como foi, filha?" 
"Foi, né, mãe?" respondeu rudemente a garota. E enquanto ela falou, duas víboras e um sapo saiu de sua boca.
 "Deus do céu!" gritou a mãe. "O que eu vejo? A culpa é da sua irmã. Ela vai pagar por isso!" Ela correu para bater na menina, mas a pobre criança conseguiu fugir floresta adentro. O filho do rei, voltando de uma caçada e vendo como a menina era bonita, perguntou à menina o que estava fazendo sozinha na floresta e por que ela estava chorando. 
"Oh, meu bom senhor, minha mãe não me quer mais em casa." Enquanto ela falava, o filho do rei viu saírem de sua boca cinco ou seis pérolas e alguns diamantes. Ele pediu que ela contasse como isso aconteceu, e ela relatou toda a história.
 O filho do rei se apaixonou por ela, e considerando que o dom que ela tinha recebido valia muito mais e superaria qualquer dote de outra moça, ele a levou ao palácio de seu pai, onde casaram.
Quanto à irmã mais velha, ela se tornou tão odiosa que sua própria mãe a expulsou de casa. Ninguém queria abrigar a pobre miserável, então ela foi a um canto da floresta onde morreu. 

Moral:
Diamantes e ouro podem
Trazer maravilhas para você;
Mas uma palavra delicada
Vale mais que a moeda dourada.

Outra  Moral:
Mesmo que, em algum momento,
Seja difícil ser gentil,
Geralmente isso vai te fazer bem
Exatamente quando você não espera.




segunda-feira, 25 de maio de 2015

XXX - As Rãs e Júpiter

Há muito, muito tempo, as Rãs pediram a Júpiter que lhes desse um rei, como tinham os outros animais. Júpiter riu-se da ignorante petição e, atendendo a ela, lançou um madeiro para o meio da lagoa. As Rãs começaram então a ter-lhe respeito; porém, logo que perceberam que não era coisa viva, foram de novo ter com o deus pedindo um rei. Júpiter, farto de ser importunado, deu-lhes a Cegonha, que começou a comer as rãs uma a uma.
Vendo elas esta crueldade, foram-se queixar a Júpiter pedindo uma solução, mas ele despediu-as dizendo: 
— Já que não ficastes contentes com o primeiro rei, sofrei com esse, que tanto me pedistes.

Moral da História: Satisfaz-te com a tua situação atual, mesmo que seja má, porque uma mudança pode piorar as coisas ainda mais. 
(Saiba quando se dar por satisfeito)




XXIX - O Leão e os outros Animais

Estava um Leão doente e fraco de velho, e veio um javali que lhe lembrou ter sido por ele maltratado noutros tempos e deu lhe uma forte trombada. Veio um Touro e deu-lhe uma cornada, e muitos outros animais, para se vingarem, maltrataram o Leão. Por fim veio um asno, e deu-lhe dois coices, com que o deitou por terra.
Chorava o Leão dizendo: 
— Tempos houve em que todos estes só com o meu bramido tremiam, e não havia nenhum tão forte que não fugisse de se encontrar comigo. Agora que me veem fraco, todos querem vingar-se e não há quem não me maltrate.

Moral da História: Os que desempenham cargos e ofícios grandes, quando o seu poder enfraquece e deixam o ofício, qualquer pobre poderá vingar e atacar dos que lhe fizeram mal, ou por obras, ou por palavras.




domingo, 24 de maio de 2015

11 - O Irmãozinho e a Irmãzinha

O irmãozinho pegou a irmãzinha pela mão e disse: — “Desde que a nossa mãezinha morreu não fomos mais felizes, e a nossa madrasta bate em nós todos os dias, e se tentamos nos aproximar dela, ela nos expulsa com os pés. A nossa refeição são os pedaços de pães duros que sobram, e o cachorrinho que fica debaixo da mesa tem mais sorte, porque para ele ela joga pedaços melhores. Tomara que o céu tenha pena de nós. Se a nossa mãe soubesse! Venha, vamos sair e andar pelo mundo.”
Eles andaram o dia todo pelas pradarias, campos, e lugares cheios de pedras, e quando chovia a irmãzinha dizia: — “O céu e os nossos corações estão chorando juntos.” À noite, eles chegaram a uma grande floresta, e eles estavam tão cansados de tristeza e fome, e também por causa da longa caminhada, que eles se deitaram numa árvore oca e dormiram.
No dia seguinte quando eles acordaram, o sol já ía alto no céu, e lançava seus raios escaldantes sobre as árvores. Então, o irmão disse: — “Irmãzinha, estou com sede, se eu conhecesse algum riacho por aqui, eu iria para pegar água para beber, acho que estou ouvindo um aqui perto.” O irmão se levantou e pegou a irmãzinha pela mão, e partiram para encontrar o riacho.
Mas a madrasta malvada era uma bruxa, e ela viu quando as crianças foram embora, e saiu às escondidas atrás deles sem que eles notassem, como as bruxas costumam fazer, e ela tinha enfeitiçado todos os riachos da floresta.
Ora, quando eles haviam encontrado um pequeno riacho pulando alegremente por sobre as pedras, o irmão ia beber um pouco de água, mas a irmã escutou uma voz que vinha do riacho: — “Quem beber de mim será um tigre, quem beber de mim será um tigre.” Então a irmã exclamou: — “Por favor, querido irmão, não beba, ou você se transformará num animal selvagem, e vai me rasgar em pedaços.” O irmão não bebeu, embora ele estivesse com muita sede, mas ele disse, — “Saberei esperar pela próxima fonte.”
Quando eles chegaram no próximo riacho a irmã ouviu quando ele também disse: — “Quem beber de mim será um lobo, quem beber de mim será um lobo.” Então a irmã gritou: — “Por favor, querido irmão, não beba essa água, ou você vai ser tornar um lobo, e irá me devorar.” O irmão não bebeu, e disse: — “Eu vou esperar até quando chegarmos na próxima fonte, mas eu então eu vou beber, diga você o que disser, porque a minha sede é grande demais.”
E quando eles chegaram na terceira fonte, a irmã ouviu que as águas diziam: — “Quem beber de mim será um cabrito, quem beber de mim será um cabrito.” A irmã disse: — “Oh, eu te imploro, meu irmão, não beba ou você irá se transformar num cabrito e irá fugir para longe.” Mas o irmão se ajoelhou no mesmo instante na margem do rio, e se inclinou e bebeu um pouco de água, e assim que as primeiras gotas tocaram os lábios dele, ele se transformou num filhote de cabrito.
E a irmãzinha começou a chorar porque o irmãozinho havia sido enfeitiçado, e o pequeno cabrito também chorou, e se sentou amargurado perto dela. Mas, por fim, a garota disse: — “Fique tranquilo, meu querido cabritinho, eu nunca, nunca vou te deixar.”
Então ela soltou sua liga dourada, e a colocou em volta do pescoço do cabrito, e ela colheu juncos e os trançou transformando-os numa corda macia. Assim ela amarrou o pequeno animal e poderia conduzí-lo, e ela andava e andava cada vez mais para dentro da floresta.
E quando eles tinham percorrido uma grande parte do caminho, eles chegaram, finalmente, em uma pequena cabana, e a garota olhou dentro, e a cabana estava vazia, então ela pensou: — “Nós poderíamos ficar aqui e morar.” Então ela começou a procurar folhas e musgos para fazer uma cama macia para o cabrito, e todas as manhãs ela saía para colher raízes, frutas e nozes para ela, e trazia grama verde para o cabrito, que comia tudo na mão dela, e estava contente e ficava brincando em volta dela. À noite, quando a irmãzinha estava cansada, e após ter feito as suas orações, ela punha a sua cabeça nas costas do cabritinho, que ficava como travesseiro, e ela dormia suavemente sobre ele. E se o seu irmão adquirisse de volta a sua forma humana, a vida se tornaria maravilhosa.
Durante algum tempo eles ficaram sozinhos na selva. Mas um dia o rei daquele país realizou uma grande caçada na floresta. Então se ouviram rajadas de buzinas, latidos de cães, e os gritos felizes dos caçadores ecoavam pelas árvores, e o cabrito ouvia tudo, e estava muito curioso para estar lá. — “Oh,” disse ele para a irmã, “eu também quero ir caçar, não aguento de vontade,” e ele insistia tanto que finalmente ela concordou. — “Mas,” disse ela para ele, “volte quando anoitecer, porque eu preciso fechar a porta para que os caçadores não entrem, então bata na porta e diga: “Minha irmãzinha, me deixe entrar!” para que eu possa saber que é você, e se você não disser isso, eu não abro a porta.” Então o pequeno cabritinho saiu dando pulinhos, porque ele estava muito feliz e era livre como um pássaro.
O rei e o caçador viram a linda criaturinha, e partiram em direção a ele, mas não conseguiram pegá-lo, e quando eles achavam que estavam quase conseguindo, ele fugia para longe pelo meio do mato até que não conseguiam mais vê-lo. Quando ficou escuro ele correu para a choupana, bateu na porta e disse: — “Minha irmãzinha, me deixe entrar.” Então a porta se abriu para ele, e ele entrou dando pulinhos, e descansou a noite inteira em sua cama macia.
No dia seguinte a caça recomeçou, e quando o cabritinho ouviu novamente o toque da corneta, e o rou! rou! dos caçadores, ele não teve paz, mas disse: “Irmãzinha, me deixe sair, eu preciso sair.” Sua irmã abriu a porta para ele, e disse: “Mas você tem de estar aqui novamente ao anoitecer e dizer a sua senha para entrar.”
Quando o rei e os caçadores novamente avistaram o cabritinho com um colar de ouro, todos se puseram a caçá-lo, mas ele era muito rápido e ágil para eles. E assim foi o dia todo, mas, finalmente, ao anoitecer, os caçadores o cercaram, e um deles o feriu no pé de leve, de maneira que ele mancava e corria devagar. Então um caçador seguiu escondido atrás dele até a cabana e ouviu quando ele disse: “Minha irmãzinha, me deixe entrar,” e viu que a porta se abriu para ele, e se fechou imediatamente. O caçador tomou nota de tudo, e foi até o rei e contou para ele o que ele tinha visto e ouvido. Então o rei disse: “Amanhã nós voltaremos a caçar.”
A irmãzinha, todavia, ficou muito assustada quando ela viu que o seu cabritinho estava machucado. Ela lavou a ferida dele, colocou ervas no machucado, e disse: “Vá dormir, querido cabritinho, para que você fique bom logo.” Mas o ferimento era tão superficial que o cabritinho, na manhã seguinte, não sentia mais nada. E quando ele ouviu barulho de caça do lado de fora, ele disse: “Eu não aguento mais, eu preciso sair, eles verão que não é tão fácil me pegar.” A irmã exclamou e disse: “Desta vez eles vão te matar, e aí eu ficarei sozinha na floresta, abandonada por todo mundo. Não vou deixar você sair.” “Aí é que eu vou morrer de tristeza,” respondeu o cabrito, “quando eu ouço o toque da corneta, eu sinto como se fosse pular para fora de mim mesmo.” Então a irmãzinha não poderia fazer outra coisa, mas abriu a porta para ele com uma dor no coração, e o cabritinho, cheio de saúde e alegria, correu para a floresta.
Quando o rei o viu, ele disse para o caçador: “Agora vamos caçá-lo o dia todo até o cair da noite, mas tomem cuidado para que ninguém o machuque.
E assim que o sol se pôs, o rei disse para os caçadores: “Agora venham e me mostrem a cabana da floresta,” e quando o rei estava na porta, e bateu e chamou: “Querida irmãzinha, me deixe entrar.” Então a porta se abriu, e o rei entrou, e lá estava a jovem mais adorável que ele já viu. A jovem ficou assustada quando viu não o seu cabritinho, mas um homem que vinha usando uma coroa de ouro na cabeça. Mas o rei olhou gentilmente para ela, estendeu a sua mão, e disse: “Você iria comigo para o meu palácio e seria a minha esposa adorada?” “Sim, majestade,” respondeu a jovem, “mas o pequeno cabritinho deve ir comigo, não posso deixá-lo.” O rei disse: “Ele ficará com você enquanto você viver, e não lhes faltará nada.” Só então o cabritinho veio correndo, e a irmã novamente o amarrou com a corda feita de juncos, o pegou em suas mãos, e foi embora da cabana com o rei.
O rei levou a linda jovem em seu cavalo e a conduziu ao palácio, onde o casamento foi realizado com grande pompa. Agora ela tinha se tornado rainha, e eles viveram felizes e juntos por muito tempo, o cabritinho era cuidado com muito amor e carinho, e passava o tempo correndo pelos jardins do palácio.
Mas a madrasta perversa, a qual era a culpada pelas crianças terem saído pelo mundo, achava o tempo todo que a irmãzinha tinha sido reduzida a pedacinhos pelos animais selvagens da floresta, e que o irmão tinha sido morto como cabritinho pelos caçadores. Então quando ela soube que eles estavam tão felizes, e passavam bem, a inveja e o ódio tomaram conta do seu coração e ela não conseguia ter paz, e ela não queria pensar em nada que não fosse infelicitar a vida deles novamente. A sua própria filha, que era tão feia quanto um filhote de cruz credo com Deus me livre, era caolha, e disse resmungando para ela: “Rainha, eu é que devia ser a rainha.” “Pode ficar sossegada,” respondeu a velhinha, e a consolava dizendo: “quando chegar a hora eu estarei preparada.”
A medida que o tempo passava, a rainha teve um menino lindo, e um dia o rei tinha saído para caçar, então a velha bruxa tomou a forma da camareira, foi para o quarto onde a rainha ficava, e disse a ela: “Venha, o seu banho está pronto, ele lhe fará bem, e vai lhe proporcionar novas forças, apresse-se antes que esfrie!”
A filha também estava perto, então elas levaram a rainha para o banheiro, e a colocaram na banheira, depois, elas trancaram a porta e saíram correndo. Mas no banheiro, elas tinham aquecido o banho com um calor tão infernal que a bela e jovem rainha se sentiu sufocada
Depois de terem feito isso, a velha pegou a sua filha e colocou uma touca de dormir na cabeça dela, e a colocou na cama do rei no lugar da rainha. Ela deu à filha a forma e a aparência da rainha, ela somente não conseguiu melhorar o olho que a sua filha tinha perdido. Mas para que o rei não percebesse isso, ela deveria se deitar do lado onde ela não tinha um olho.
À noite, quando o rei voltou para casa, e soube que ele tinha um filho ele ficou muito feliz, e foi para a cama da sua querida esposa para saber como ela estava. Mas a velha gritou rápido: “Pela tua vida, mantenha as cortinas fechadas, a rainha não pode ver a luz ainda, e precisa descansar.” O rei saiu, e não descobriu que a falsa rainha estava deitada na cama.
Mas a meia noite, quando todos estavam dormindo, a babá, que estava sentada no quarto do bebê perto do berço, e que era a única pessoa acordada, viu a porta aberta e a verdadeira rainha entrando. A jovem rainha tirou a criança do berço, colocou-a em seus braços, e deu de mamar a ela. Depois ela sacudiu o travesseirinho, deitou novamente a criança, e a cobriu com uma pequena manta. E ela não se esqueceu do cabritinho, mas foi até o cantinho onde ele estava e fez um carinho nas suas costas. Depois ela saiu silenciosamente pela porta novamente. Na manhã seguinte a babá perguntou aos guardas se alguém teria entrado no palácio durante a noite, mas eles responderam: “Não, não vimos ninguém.”
Ela vinha então durante muitas noites e nunca falava uma palavra: a babá sempre a via, mas ela não ousava dizer nada para ninguém.
Quando tinha passado algum tempo nesta mesma rotina, a rainha começou a falar a noite e disse: “Como está o meu filho, como anda o meu cabritinho? Vim duas vezes, e depois não virei nunca mais.”
A babá não respondeu, mas quando a rainha tinha saído novamente, ela foi até o rei e lhe contou tudo. O rei disse: “Oh, céus! o que é isto? Amanhã à noite eu vou ficar vigiando perto da criança.” À noite ele foi até o quarto do bebê, e a meia noite a rainha apareceu novamente e disse:”Como está o meu filho, como anda o meu cabritinho? Uma vez eu vim, e depois nunca mais.”
E ela cuidou da criança como ela fazia antes de desaparecer. O rei não ousou falar com ela, mas na noite seguinte ele fez vigília novamente. Então ela disse: “Como está o meu bebê, como vai o meu cabritinho? Desta vez eu vim, mas depois nunca mais.”
Então o rei não conseguiu se conter, e correu em direção à ela e disse: “Você deve ser ninguém mais que a minha querida esposa,” e no mesmo instante ela viveu novamente, e com a graça de Deus, ela ficou viçosa, rosada e cheia de saúde.
Então ela contou ao rei a maldade que a bruxa perversa e a sua filha eram culpadas do que tinha acontecido com ela. o rei ordenou que elas fossem apresentadas diante do tribunal, e o julgamento foi decidido em condenação para elas. A filha dela foi levada para a floresta onde ela foi feita em pedacinhos pelos animais selvagens, mas a bruxa foi atirada no fogo e queimada até virar brasa. E quando ela era queimada, o cabritinho mudou o seu aspecto e tomou a forma humana novamente, então a irmãzinha e o irmãozinho viveram felizes juntos.




10 - O Bando de Maltrapilhos

O galo uma vez disse para a galinha: 
— “Agora chegou a época das nozes amadurecerem, então, vamos subir juntos a colina e vamos ser os primeiros a comer até enfartar antes que o esquilo venha e leve todas as nozes embora.” 
— “Sim,” respondeu a galinha. “venha, nós vamos nos divertir muito juntos.” Então, eles subiram a colina, e como estava um dia ensolarado eles ficaram até o anoitecer. 
Agora eu não sei se era porque eles haviam comido muito e estavam muito pesados, ou se eles eram muito orgulhosos e não queriam voltar a pé para casa, e o galo pretendia fazer uma pequena carroça com as cascas das nozes. Quando a carroça ficou pronta, a galinha se sentou no banco, e disse para o galo: —Você poderia ser atrelado à carroça.” 
— “De jeito nenhum,” disse o galo, “eu prefiro ir para casa à pé do que ser atrelado a uma carroça, não, não foi isso que combinamos. Eu não me importaria de ser o cocheiro e ficar sentado na boléia, mas puxar a carroça sozinho eu não vou mesmo.” 
Enquanto eles estavam assim discutindo, um pato grasnou para eles: 
— “Ei, seus pequenos ladrões, quem autorizou vocês a subirem na minha colina de nozes? Esperem só, e vocês vão pagar por isso!” e correu de bico aberto em direção ao galo. Mas o galo não era medroso, e enfrentou o pato com coragem, e machucou tanto o pato com as suas esporas que ele teve de pedir misericórdia, e permitiu que fosse atrelado à carroça como punição. 
O pequeno galo se sentou na boleia como se fosse o cocheiro, e lá foram eles galopando, com o pato, correndo tudo que podia. Depois de terem percorrido uma parte do caminho, eles encontraram dois passageiros que estavam andando a pé, um alfinete e uma agulha. Os dois gritaram: 
— “Parem, parem!” e disseram que o dia estava ficando escuro que nem piche, e que eles não conseguiam dar nem um passo sequer, e que havia tanta sujeira na estrada, e perguntaram se eles não podiam subir na carroça um pouquinho. 
Eles tinham ido até a cervejaria do alfaiate que ficava perto do portão, e tinham ficado muito tempo lá tomando cerveja. Como eles eram magrinhos, e portanto, não ocupavam muito espaço, o galo permitiu que os dois subissem, mas os dois deviam prometer a ele e à pequena galinha que não pisariam em seus pés. Tarde da noite eles chegaram numa estalagem, e como eles não gostavam de viajar a noite, e como o pato não tinha mais forças no pé, e caía de um lado para outro, eles decidiram entrar. 
O estalajadeiro, a princípio, fez algumas objeções, a sua casa já estava cheia, além disso, pensou ele, eles não poderiam ser pessoas muito distintas, mas, finalmente, como a conversa deles era agradável, e haviam lhe dito que ele poderia ficar com os ovos que a galinha havia botado no caminho, e também poderiam ficar com o pato, que botava um ovo todos os dias, o estalajadeiro finalmente disse que eles poderiam ficar aquela noite. 
E então, eles foram bem servidos, e festejaram e fizeram muito barulho. Bem cedo de manhã, quando o dia estava clareando, e todos estavam dormindo, o galo acordou a galinha, trouxe o ovo, e comeram juntos, mas a casca eles jogaram no fogão a lenha. Então, eles foram até a agulha que ainda estava sonolenta, pegaram-na pela cabeça, e a espetaram na almofada da cadeira do estalajadeiro, e colocaram o alfinete na toalha dele, e finalmente, sem alhos nem bugalhos, foram embora voando por cima do fogão. 
O pato que gostava de dormir a céu aberto e tinha ficado no quintal, ouviu quando eles estavam indo embora, ficou muito feliz, e encontrou um riacho, e por ele foi nadando, porque era um caminho muito mais rápido de viajar do que estando preso a uma carroça. O estalajadeiro só saiu da cama duas horas depois que eles tinham ido embora, ele se lavou e ia se secar, então, o alfinete espetou a sua cara e deixou uma lista vermelha que ia de uma orelha a outra. 
Depois disto ele foi para a cozinha e quis acender um charuto, mas quando ele chegou perto do fogão a casca do ovo explodiu em seus olhos. 
— “Hoje de manhã todas as coisas estão caindo na minha cabeça,” disse ele, e nervoso se sentou na cadeira de seu pai, mas ele deu um pulo novamente e gritou: 
— “Ai meu Deus,” pois a agulha havia picado num lugar bem pior que o alfinete, e não tinha sido na cabeça. 
Agora, sim, ele tinha ficado muito furioso, e desconfiou dos hóspedes que haviam chegado bem tarde na noite anterior, e quando ele decidiu procurar por eles, eles tinham ido embora. Então, ele jurou nunca mais aceitar maltrapilhos em sua estalagem, porque eles consomem muito, não pagam nada, e usam de artifícios desonestos durante a negociação a pretexto de gratidão.



9 - Os Doze Irmãos

Era uma vez um rei e uma rainha que viviam felizes e em harmonia e que tinham doze filhos, sendo todos garotos. Então, o rei disse para a sua esposa:
— “Se a décima terceira criança que você está para trazer ao mundo for uma garota, os doze meninos devem morrer, para que os bens dela sejam maiores, e para que o reino possa ser dela somente.”
Então, ele ordenou que doze esquifes fossem fabricados, os quais já estavam cheios de pedaços de madeiras, e em cada um havia um pequeno travesseiro para o morto, e os caixões tinham sido levados para uma sala fechada, e ele deu a chave para que a rainha guardasse, e pediu para que ela não falasse sobre isso com ninguém.
A mãe todavia, se sentava e lamentava o dia todo, até que o filho mais jovem, que estava sempre com ela, e a quem ela chamava de Benjamin, nome esse que foi tirado da Bíblia, disse a ela:
— “Querida mamãe, porque você está tão triste?”
— “Querido filhinho,” respondeu ela, “Não posso lhe dizer.” Mas ele não a deixava sossegada até que ela foi e abriu a sala, e mostrou a ele os doze caixões que estavam terminados e cheios de pedacinhos de madeiras. Então, ela disse:
— “Meu querido Benjamin, teu pai mandou fazer estes caixões para ti e para os teus onze irmãos, pois, se eu trouxer uma garotinha no mundo, você será morto e sepultado com eles.”
E enquanto ela ia dizendo isso, ela chorava, e o filho a consolava e dizia:
— “Não chore, querida mãezinha, nós vamos nos salvar, e sairemos daqui.” Mas ela disse:
— “Vai para a floresta com os teus onze irmãos, e faça com que um fique permanentemente sobre a árvore mais alta que puder ser encontrada, e fique atento, olhando para a torre aqui do castelo.
Se eu der a luz a um filhinho, eu colocarei uma bandeira branca, e então, vocês poderão se arriscar a voltar, mas se eu der a luz a uma menina, eu levantarei uma bandeira vermelha, e então, vocês deverão fugir o mais rápido que puderem, e que Deus possa proteger todos vocês. E eu todas as noites levantarei e farei uma oração para vocês — no inverno, para que vocês possam se aquecer perto de uma fogueira, e no verão, para que vocês não desfaleçam com tanto calor.”
Depois que ela abençoou os filhos, eles seguiram para a floresta. Todos eles, no entanto, ficavam atentos, e se sentavam no pé de carvalho mais alto da floresta e ficavam olhando em direção à torre. Quando onze dias tinham se passado, e tinha chegado a vez de Benjamin, ele viu que uma bandeira tinha sido hasteada. Não era, no entanto, uma bandeira branca, mas uma bandeira vermelha, a qual anunciava que todos eles deviam morrer.
Quando os seus irmãos souberam daquilo, eles ficaram muito bravos, e disseram:
— “Todos nós devemos sofrer por causa de uma garota? Juramos que todos nós iremos nos vingar!
— quando encontrarmos uma menina, o sangue vermelho dela deve jorrar."
Então, eles penetraram mais fundo na floresta, e no meio dela, que era a parte mais escura, eles encontraram a pequena cabana abandonada de uma feiticeira, onde não havia ninguém. Então, eles disseram:
— “Vamos ficar aqui, e tu, Benjamin, que és o menor e o mais fraco, tu ficarás em casa e cuidarás dela, nós outros vamos sair para conseguir alimento."
Então, eles foram para a floresta para caçar lebres, cervos selvagens, pássaros e pombos, e qualquer coisa que houvesse para comer, eles levavam um pouco para Benjamin, que tinha de arrumar a casa para eles, para que eles pudessem matar a fome. Juntos viveram eles na pequena cabana durante dez anos, e o tempo não parecia longo para eles.
A pequena garota, que a rainha, a mãe deles, tinha dado a luz, já tinha crescido, ela era boa de coração, e tinha um rosto encantador, e na testa dela havia uma estrela de ouro. Uma vez, quando houve uma grande arrumação no palácio, ela viu doze camisas de homens entre as coisas que estavam lá, e perguntou a sua mãe:
— “A quem pertencem estas doze camisas, porque elas são pequenas demais para serem do papai? Então, a rainha respondeu com o coração dolorido:
— “Querida filhinha, estas camisas são dos teus doze irmãos.” Disse a garota, então:
— “Onde estão meus doze irmãos, nunca ouvi falar deles?” A mãe respondeu:
— “Só Deus sabe onde eles estão, eles estão andando pelo mundo.” Então, ela pegou a pequena e abriu a sala para a garota, e lhe mostrou os doze caixões cheios de pedaços de madeiras e com os travesseiros para a cabeça.
— “Estes caixões,” disse ela, “estavam destinados para os teus irmãos, mas eles foram embora escondidos antes que tu nasceste,” então, a garotinha disse:
— “Querida mãezinha, não chore, eu irei procurar os meus irmãos.”
Então, ela pegou as doze camisas e partiu, e seguiu direto para a grande floresta. Ela caminhou o dia todo, e a noitinha ela encontrou a casinha da feiticeira. Então, ela entrou na casa, e encontrou um jovem garoto, que perguntou:
— “De onde você veio, e para onde você vai?” e ficou atônito como ela era linda, e usava trajes reais, e tinha uma estrela na testa.
E ela respondeu:
— “Eu sou filha da rainha, e estou procurando meus doze irmãos, e eu irei até o fim do céu azul para encontrá-los.” Ela também mostrou a ele as doze camisas que um dia havia pertencido a eles. Então, Benjamin compreendeu que ela era sua irmã, e disse:
— “Eu sou Benjamin, teu irmão caçula.” E ela começou a chorar de alegria, e Benjamin chorou também, e eles beijaram e se abraçaram um ao outro como muita ternura.
Depois disto ele disse:
— “Querida irmãzinha, há ainda mais um problema. Nós fizemos um acordo que toda garota a quem encontrássemos deveria morrer, porque nós fomos obrigados a deixar o nosso reino por causa dela!”
Então, ela disse:
— “Morrerei com prazer, se morrendo puder salvar os meus doze irmãos.”
— “Não,” respondeu ele, “tu não morrerás, fique sentada aqui debaixo deste barril até que os nossos doze irmãos cheguem, e então, eu conseguirei entrar num acordo com eles.”
Ela fez o que ele pediu, e quando a noitinha os outros irmãos chegaram da caça, o jantar deles estava pronto. E quando eles estavam todos sentados na mesa, e estavam comendo, eles perguntaram:
— “Quais são as novidades?”
Benjamin respondeu: — “Vocês não souberam de nada?”
— “Não,” responderam eles. Ele continuou:
— “Vocês foram para a floresta e eu fiquei em casa, no entanto, eu sei mais do que vocês.”
— “Diga-nos, então," exclamaram eles.
Ele respondeu: — “Me prometam primeiro que a primeira garota que nós encontrarmos não irá morrer.”
— “Sim,” exclamaram todos eles, “ela terá misericórdia, mas, conte-nos logo.”
Então, ele disse:
— “A nossa irmã está aqui,” e ele levantou o barril, e a filha do rei apareceu com seus trajes reais e com uma estrela na testa, e ela era linda, delicada e meiga. Então, todos eles ficaram felizes, e a abraçaram, e a beijaram e a amaram de todo o coração.
Agora ela ficava em casa com Benjamin e o ajudava no trabalho doméstico. Os onze foram para a floresta para caçar veados, pássaros e pombos, para que eles pudessem se alimentar, e a irmãzinha junto com Benjamim cuidavam da preparação da caça para eles.
Ela procurou na floresta ervas e vegetais para cozinhar, e colocou as panelas no fogo para que o jantar ficasse pronto quando os onze chegassem. Ela também mantinha a ordem na pequena casa, e colocava lindos lençóis limpos e brancos nas caminhas, e os irmãos estavam sempre felizes e viviam em grande harmonia com ela.
Um dia os dois que ficavam em casa, haviam preparado uma bela surpresa, eles se sentaram e comeram e beberam e estavam todos felizes. Havia, porém, um pequeno jardim que pertencia à casa da feiticeira onde ficavam doze pés de lírios, os quais também são chamados de “estudantes”. Ela queria fazer uma surpresa para os seus irmãos, e colheu as doze flores, e pensou em presentear cada um deles com uma flor durante o jantar.
Mas no exato momento que ela colheu as flores os doze irmãos se transformaram em doze corvos, e voaram pela floresta, e a casa e o jardim desapareceram também. E agora, a pobre garota estava sozinha na floresta virgem, e quando ela olhava ao redor, uma velhinha estava sentada perto dali e disse:
— “Minha criança, o que você fez? Porque você não deixou que as doze flores brancas crescessem? Eles eram teus irmãos, que agora para sempre foram transformados em corvos.” A garota disse, chorando:
— “Não existe uma maneira de libertá-los?”
— “Não,” disse a mulher, “só existe uma maneira no mundo todo, e isso é tão difícil que você jamais conseguirá libertá-los desse jeito, porque você precisa ficar muda durante sete anos, e não pode falar nem rir, e se você falar uma palavra, e somente uma hora dos sete anos estiver faltando, tudo estará perdido, e os teus irmãos serão mortos por causa dessa palavra.”
Então, a garota falou de coração:
— “Eu tenho certeza de que libertarei os meus irmãos,” e foi e procurou uma árvore bem alta e se sentou no topo dela e ficava tecendo, e não falava nem ria. Ora, aconteceu que um rei estava caçando na floresta, ele tinha um grande cão galgo que correu até a árvore onde a garota estava sentada, e pulava em torno da árvore, ganindo e latindo para ela.
Então, o rei se aproximou e viu a bela princesa que tinha uma estrela de ouro na testa, e ficou tão encantado com sua beleza, que ele a convidou para que fosse sua esposa. Ela não respondia, mas fazia pequenos acenos com a cabeça. Então, ele mesmo subiu na árvore, trouxe-a para baixo, colocou-a em seu cavalo e a levou para o seu palácio. Então, o casamento foi festejado com grande festa e muita alegria, mas a noiva não falava nem sorria.
Quando eles tinham vivido felizes juntos durante alguns anos, a mãe do rei, que era uma criatura perversa, começou a difamar a jovem rainha, e disse ao rei:
— “Ela é uma mendiga vulgar que trouxeste da caça contigo. Quem sabe que coisas horrorosas ela não faz às escondidas!”
Ainda que ela seja muda, e não consiga falar, ela poderia sorrir pelo menos, mas aqueles que não riem, tem consciências pesadas.” A princípio, o rei não quis acreditar nela, mas a velha falava disso o tempo todo, e a acusava de coisas tão assustadoras, que por fim o próprio rei se deixou convencer e ela foi condenada a morte.
E aconteceu que uma grande fogueira foi acesa no pátio do palácio, onde ela deveria ser queimada, e o rei ficou em cima na janela e via tudo com lágrimas nos olhos, porque ele a amava muito. E quando ela foi amarrada bem forte à fogueira, e o fogo começou a lamber as suas roupas com sua língua vermelha, o último momento dos sete anos havia se expirado. Então, um ruflar de asas foi ouvido no ar, e doze corvos vieram voando em direção à fogueira, e pousaram, e quando eles tocaram a terra, eis que eram os doze irmãos dela, que ela tinha libertado.
Eles apagaram totalmente a fogueira, extinguiram as chamas, libertam a irmã que amavam tanto, e beijaram e a abraçaram. E agora, que ela podia abrir a boca para falar, ela contou ao rei porque ela tinha ficado muda, e nunca podia ter dado um sorriso. O rei dava pulos de alegria ao saber que ela era inocente, e todos eles viveram em grande harmonia até o fim da vida deles. A madrasta má foi levada para o tribunal, e colocada dentro de um tonel com óleo fervente e cobras venenosas, e teve uma morte cruel.