quarta-feira, 24 de junho de 2015

O Jardim das Flores Vivas Parte II - Capítulo II - Alice Através do Espelho

“De onde vem?” perguntou a Rainha Vermelha. “E para onde vai? Levante os olhos, fale direito e não fique girando os dedos o tempo todo.” Alice obedeceu a todas essas instruções e explicou, o melhor que pôde, que perdera seu caminho. “Não sei o que você quer dizer com seu caminho”, disse a Rainha; “todos os caminhos aqui pertencem a mim… mas afinal, por que veio até aqui?” acrescentou num tom mais afável. “Enquanto pensa no que dizer, faça reverências, poupa tempo.”
Alice ficou um pouco surpresa com aquilo, mas estava fascinada demais pela Rainha para duvidar dela. “Vou tentar quando voltar para casa”, pensou, “da próxima vez que estiver atrasada para o jantar.” 
“Já está na hora de você responder”, disse a Rainha, olhando seu relógio; “abra um pouco mais a boca quando fala, e diga sempre ‘Vossa Majestade’.” 
“Só queria ver como era o jardim, Vossa Majestade…” 
“Está bem”, disse a Rainha, dando-lhe tapinhas na cabeça, do que Alice não gostou nada, “se bem que, quando você diz ‘jardim’… já vi jardins que fariam este parecer um matagal.” 
Alice não se atreveu a contestar e continuou: “…e pensei em tentar chegar até o alto daquele morro…” 
“Quando você diz ‘morro’”, a Rainha interrompeu, “eu poderia lhe mostrar morros que a fariam chamar esse de vale.” 
“Não, não fariam”, disse Alice, surpresa por finalmente tê-la contestado: “um morro não pode ser um vale. Isso seria um absurdo…” 
A Rainha Vermelha sacudiu a cabeça. “Pode chamar de ‘absurdo’ se quiser”, disse, “mas já ouvi absurdos que fariam este parecer tão sensato quanto um dicionário!” 
Alice fez mais uma reverência, pois temia, pelo tom da Rainha, que estivesse um pouco ofendida. E as duas saíram andando em silêncio até chegar ao alto do pequeno morro. 
Por alguns minutos Alice ficou sem falar, olhando a região em todas as direções… e que região curiosa era aquela. Havia uma quantidade de riachinhos minúsculos cortando-a de lado a lado, e o terreno entre eles era dividido por uma porção de pequenas cercas verdes, que iam de riacho a riacho. 
“Veja só! Está demarcado exatamente como um grande tabuleiro de xadrez!” Alice disse por fim. “Deve haver algumas peças se mexendo em algum lugar… ah, lá estão!” acrescentou encantada, e seu coração começou a disparar de entusiasmo enquanto continuava. “É uma partida de xadrez fabulosa que está sendo jogada… no mundo todo… se é que isso é o mundo. Oh, como é divertido! Como eu gostaria de ser um deles. Não me importaria de ser um Peão, contanto que pudesse participar… se bem que, é claro, preferiria ser uma Rainha.” 
Ao dizer isso, olhou de rabo de olho, um tanto acanhada, para a verdadeira Rainha, mas sua companheira apenas sorriu amavelmente e observou: “É fácil arranjar isso. Você pode ser o Peão da Rainha Branca, se quiser, pois Lily é muito novinha para jogar; você está na Segunda Casa; quando chegar à Oitava Casa, será uma Rainha…” Exatamente nesse instante, sabe-se lá por quê, as duas começaram a correr. 
Alice nunca conseguiu entender direito, refletindo sobre isso mais tarde, como tinham começado: tudo que lembrava é que estavam correndo de mãos dadas, e a Rainha corria tão depressa que ela mal conseguia acompanhá-la. Mesmo assim, a Rainha não parava de gritar “Mais rápido! Mais rápido!”, mas Alice sentia que não podia ir mais rápido, embora não lhe sobrasse fôlego para dizer isso. 
O mais curioso nisso tudo era que as árvores e as outras coisas em volta delas nunca mudavam de lugar: por mais depressa que ela e a Rainha corressem, não pareciam ultrapassar nada. “Será que todas as coisas estão se movendo conosco?” pensou, atônita, a pobre Alice. E a Rainha pareceu lhe adivinhar os pensamentos, pois gritou “Mais rápido! Não tente falar!”. 
Não que Alice tivesse a menor intenção de fazer isso. Tinha a impressão de que nunca conseguiria falar de novo, tão sem fôlego estava ficando; mesmo assim, a Rainha gritava “Mais rápido! Mais rápido!” e a arrastava consigo. “Estamos chegando?” Alice conseguiu arquejar finalmente.
“Chegando!” a Rainha repetiu. “Ora, passamos por lá dez minutos atrás! Mais rápido!” E correram em silêncio por algum tempo, o vento assobiando nos ouvidos de Alice e, imaginou, quase lhe arrancando fora os cabelos. 
“Vamos! Vamos!” gritou a Rainha. “Mais rápido! Mais rápido!” E correram tão depressa que por fim pareciam deslizar pelo ar, mal roçando o chão com os pés, até que de repente, bem quando Alice estava ficando completamente exausta, pararam, e ela se viu sentada no chão, esbaforida e tonta. 
A Rainha a recostou contra uma árvore e disse gentilmente: “Pode descansar um pouco agora.” 
Alice olhou ao seu redor muito surpresa. “Ora, eu diria que ficamos sob esta árvore o tempo todo! Tudo está exatamente como era!” 
“Claro que está”, disse a Rainha, “esperava outra coisa?” 
“Bem, na nossa terra”, disse Alice, ainda arfando um pouco, “geralmente você chegaria a algum outro lugar… se corresse muito rápido por um longo tempo, como fizemos.” 
“Que terra mais pachorrenta!” comentou a Rainha. “Pois aqui, como vê, você tem de correr o mais que pode para continuar no mesmo lugar. Se quiser ir a alguma outra parte, tem de correr no mínimo duas vezes mais rápido!” 
“Prefiro não tentar, por favor!” suplicou Alice. “Estou muito satisfeita de estar aqui… só que estou com tanto calor e com tanta sede!” 
“Sei do que você gostaria!” disse a Rainha bondosamente, tirando uma caixinha do bolso. “Aceita um biscoito?” 
Alice achou que seria pouco educado dizer “Não”, embora aquilo não fosse nem de longe o que queria. Pegou o biscoito e fez o possível para comê-lo: era sequíssimo, e pensou que nunca ficara tão engasgada em toda a sua vida. 
“Enquanto você se revigora”, disse a Rainha, “vou tirando as medidas.” E sacou uma fita métrica do bolso e pôs-se a medir o terreno e a fincar pequenas estacas aqui e ali. 
“Ao fim de dois metros”, disse, cravando uma estaca para marcar a distância, “eu lhe darei suas instruções… aceita mais um biscoito?” 
“Não, obrigada”, recusou Alice; “um foi o bastante!” 
“Matou a sede, espero”, disse a Rainha. 
Alice não soube o que responder, mas felizmente a Rainha não esperou resposta, continuando: “Ao fim de três metros vou repeti-las… para o caso de você as ter esquecido. Ao fim de quatro, vou dizer adeus. E ao fim de cinco, vou-me embora!” 
A essa altura tinha fincado todas as estacas, e Alice olhou-a com muito interesse enquanto ela voltava para a árvore e em seguida começava a caminhar lentamente ao longo da fila. 
Junto à estaca dos dois metros a Rainha virou o rosto e disse: “Um peão avança duas casas em seu primeiro movimento, como você sabe. Assim, você vai avançar muito rápido para a Terceira Casa… de trem, eu acho… e num instante vai se ver na Quarta Casa. Bem, essa casa pertence a Tweedledum e Tweedledee… a Quinta é quase só água… a Sexta pertence a Humpty Dumpty… Mas você não faz nenhum comentário?” 
“Eu… eu não sabia que devia fazer algum… bem nesse ponto”, Alice gaguejou. 
“Devia ter dito”, prosseguiu a Rainha em tom de grave censura, “‘é extremamente gentil da sua parte me falar tudo isto’… mas vamos supor que isso foi dito… a Sétima Casa é toda no bosque… contudo, um dos Cavaleiros lhe mostrará o caminho… e na Oitava Casa, nós, as Rainhas, estaremos juntas; é tudo festa e diversão!” Alice se levantou, fez uma reverência e se sentou de novo. 
Na estaca seguinte a Rainha se virou e, desta vez, disse: “Fale em francês quando a palavra em inglês para alguma coisa não lhe ocorrer… ande com as pontas dos pés para fora… e lembre-se de quem você é.” Não esperou que Alice fizesse uma reverência dessa vez, caminhando rápido para a outra estaca, onde se virou por um instante para dizer “Adeus” e correu para a seguinte. 
Como aquilo aconteceu, Alice nunca soube, mas exatamente ao chegar à última estaca, a Rainha desapareceu. Se sumiu no ar ou se correu veloz para o bosque (“e ela é capaz de correr muito rápido!” pensou Alice), não havia como saber, e Alice começou a se lembrar de que era um Peão e de que logo seria hora de se mover.




O Jardim das Flores Vivas Parte I - Capítulo II - Alice Através do Espelho

“EU VERIA O JARDIM MUITO MELHOR”, disse Alice para si mesma, “se pudesse chegar ao topo daquele morro, e cá está uma trilha que leva direto para lá… pelo menos — não, não tão direto…” (depois de seguir a trilha por alguns metros e dar várias viradas bruscas) “mas suponho que por fim chega lá. É interessante como se enrosca! Mais parece um saca-rolha que um caminho! Bem, esta volta vai dar no morro, suponho… não vai! Vai dar direto na casa de novo! Bem, neste caso vou tentar na direção contrária.”
E assim fez: ziguezagueando para cima e para baixo, e tentando volta após volta, mas sempre voltando para a casa, fizesse o que fizesse. Na verdade, certa vez, quando deu uma virada bem mais rápido que de costume, não pôde evitar uma trombada nela. “É inútil falar sobre isso”, disse Alice, olhando para a casa e fingindo estar discutindo com ela. “Não vou entrar ainda. Sei que deveria atravessar o espelho de novo… de volta à sala… e seria o fim de todas as minhas aventuras!” 
Assim, dando as costas para a casa com determinação, lá se foi mais uma vez pela trilha, decidida a avançar sem trégua até chegar ao morro. Por alguns minutos tudo correu bem e ela acabava de dizer “Desta vez realmente vou conseguir…” quando a trilha deu uma guinada repentina, chacoalhou (segundo a descrição que fez mais tarde), e no instante seguinte ela se viu de fato entrando porta adentro. 
“Oh, mas que azar. Nunca vi casa tão intrometida! Nunca!” 
No entanto, lá estava o morro, bem à vista, de modo que não havia outra coisa a fazer senão começar de novo. Dessa vez topou com um grande canteiro, orlado de margaridas, e um salgueiro crescendo no meio. 
“Ó Lírio-tigre!” chamou Alice, dirigindose a um que ondulava graciosamente ao vento, “gostaria que pudesse falar!” 
“Pois podemos”, falou o Lírio-tigre, “quando há alguém com quem valha a pena conversar.” 
Alice ficou tão espantada que perdeu a voz por um minuto; quase pôs o coração pela boca. Por fim, como o Lírio-tigre apenas continuava a balançar, falou de novo, numa voz tímida… quase um sussurro: “E todas as flores podem falar?” 
“Tão bem quanto você”, respondeu o Lírio-tigre. “E bem mais alto.” 
“Seria pouco delicado da nossa parte começar, sabe”, disse a Rosa, “e eu realmente estava me perguntando quando você falaria! Disse comigo: ‘O semblante dela me diz alguma coisa, embora não seja uma coisa inteligente!’ Apesar de tudo, você tem a cor certa, e isso já é meio caminho andado.” 
“Não me importo com a cor”, observou o Lírio-tigre. “Se pelo menos suas pétalas se encrespassem um pouco mais, tudo estaria bem com ela.” Não gostando de se ver criticada, Alice começou a fazer perguntas: 
“Não sentem medo às vezes de ficar plantados aqui fora, sem ninguém para cuidar de vocês?” 
“Há a árvore no meio”, disse a Rosa. “Para que mais ela serve?” 
“Mas o que poderia ela fazer se surgisse algum perigo?” perguntou Alice. 
“Abrir o berreiro!” gritou uma Margarida. “É por isso que os salgueiros são chamados chorões!”
“Você não sabia disso?” espantou-se outra Margarida, e então todas começaram a gritar ao mesmo tempo, até que o ar pareceu repleto de vozes esganiçadas. “Silêncio, todas vocês!” gritou o Lírio-tigre agitando-se arrebatadamente de um lado para outro, com frêmitos de excitação. “Sabem que não posso alcançá-las!” disse entre arquejos, inclinando a cabeça trêmula para Alice, “ou não se atreveriam a fazer isso.” 
“Não faz mal!” Alice disse num tom apaziguador; e curvando-se para as margaridas, que estavam recomeçando naquele instante, sussurrou: “Se não calarem a boca, eu as colho!” 
O silêncio foi imediato, e várias das margaridas cor-de-rosa ficaram brancas. 
“Muito bem”, falou o Lírio-tigre. “As margaridas são as piores. Quando uma fala, começam todas ao mesmo tempo, fazendo um alarido que deixa qualquer um murcho.” 
“Como é possível que vocês todos possam falar tão bem?” disse Alice, na esperança de melhorar o humor dele com um elogio. “Estive em muitos jardins antes, mas nenhuma flor podia falar.” 
“Ponha a mão na terra e sinta”, disse o Lírio-tigre. “Assim vai saber por quê.” 
Alice obedeceu. “É muito dura”, observou, “mas não sei o que uma coisa tem a ver com a outra.” “Na maioria dos jardins”, explicou o Lírio-tigre, “fazem os canteiros fofos demais… por isso as flores estão sempre dormindo.” Parecia uma excelente razão, e Alice gostou muito de ouvi-la. “Nunca pensei nisso antes!” disse. 
“Na minha opinião, você nunca pensa em coisa alguma”, disse a Rosa num tom bastante ríspido.
“Nunca vi ninguém com ar mais bronco”, comentou uma Violeta, tão de repente que Alice deu um pulo, pois ela não tinha falado antes. 
“Dobre sua língua!” exclamou o Líriotigre. “Como se você já tivesse visto alguém! Enfia a cabeça sob as folhas e fica lá roncando, até saber tão pouco do que se passa no mundo quanto um botão!”
“Há mais pessoas no jardim além de mim?” Alice perguntou, preferindo não levar em conta a última observação da Rosa. 
“Há uma outra flor no jardim que é capaz de andar como você”, disse a Rosa. “Pergunto-me como fazem isso… (“Você está sempre se espantando”, interrompeu o Lírio-tigre), “mas ela é mais folhuda que você.” 
“É parecida comigo?” Alice perguntou ansiosa, pois lhe ocorrera a ideia: “Há uma outra menininha em algum canto do jardim!” 
“Bem, tem a mesma forma desajeitada que você”, a Rosa disse, “mas é mais vermelha… e tem as pétalas mais curtas, acho.” 
“Tem as pétalas mais próximas, quase como uma dália”, o Lírio-tigre interrompeu; “não descaídas em redor como as suas.” 
“Mas isso não é culpa sua”, a Rosa acrescentou delicadamente. “Você está começando a fenecer, sabe… e nesse caso é impossível evitar que nossas pétalas fiquem um pouco desalinhadas.” 
Alice não gostou nada dessa ideia; assim, para mudar de assunto, perguntou: “Ela vem aqui de vez em quando?”
“Provavelmente logo a verá”, disse a Rosa. “É do tipo que tem nove espigas.” 
“Onde as usa?” Alice perguntou com certa curiosidade. 
“Ora, em volta da cabeça, é claro”, respondeu a Rosa. “O que me admirou foi que você não tivesse algumas também. Pensei que fosse a norma geral.” 
“Lá vem ela!” gritou a Esporinha. “Estou ouvindo os passos dela, chump, chump, chump, no cascalho!” 
Alice olhou em volta aflita e descobriu que era a Rainha Vermelha. “Como ela cresceu!” foi sua primeira observação. De fato: quando Alice a encontrara entre as cinzas, tinha só sete centímetros de altura… e cá estava, meia cabeça mais alta do que ela própria! 
“É o ar fresco que faz isso”, disse a Rosa, “temos um ar maravilhosamente puro aqui fora.” 
“Acho que vou ao encontro dela”, disse Alice, pois, embora as flores fossem bastante interessantes, sentiu que seria muito mais sensacional ter uma conversa com uma Rainha de verdade. 
“Isso você não vai conseguir”, disse a Rosa. “Eu a aconselharia a ir ao contrário.
” Como isso lhe soou absurdo, Alice não disse nada e partiu imediatamente em direção à Rainha Vermelha. Para sua surpresa, num instante a perdeu de vista e se viu entrando pela porta da frente de novo. 
Um pouco irritada, recuou e, depois de olhar para todos os lados à procura da Rainha (que finalmente avistou, bem longe dali), pensou que daquela vez podia tentar o estratagema de caminhar na direção oposta. 
Sucesso total. Não andara nem um minuto quando se viu cara a cara com a Rainha Vermelha, com o morro que tanto desejara alcançar bem à vista.



sexta-feira, 19 de junho de 2015

A Casa do Espelho Parte I - Capítulo I - Alice Através do Espelho

UMA COISA ERA CERTA: a gatinha branca nada tivera a ver com aquilo; a culpa fora toda da gatinha preta. Pois no último quarto de hora a cara da gatinha branca estivera sendo lavada pela gata velha (o que, apesar de tudo, ela suportara bastante bem); como você vê, ela não teria podido meter sua patinha na travessura. 
Era assim que Dinah lavava a cara dos filhotes: primeiro, erguia o pobre bichano pela orelha com uma pata, depois, com a outra, esfregava-lhe a cara toda ao contrário, começando pelo focinho; e, neste momento mesmo, como disse, estava muito atarefada com a gatinha branca, que se mantinha bastante sossegada e tentando ronronar — sem dúvida sentindo que aquilo tudo era para o seu bem.
Mas a faxina da gatinha preta terminara mais cedo aquela tarde, e assim, enquanto Alice enroscava-se num canto da poltrona grande, meio conversando consigo mesma e meio dormindo, ela se esbaldava com a bola de lã que Alice tentara enovelar, rolando-a para cima e para baixo até desmanchá-la toda de novo; e lá estava a lã, espalhada sobre o tapete, cheia de nós e emaranhados, com a gatinha correndo no meio atrás do próprio rabo. 
“Oh, sua coisinha travessa!” exclamou Alice, agarrando-a e dando-lhe um beijinho para fazê-la compreender que estava frita. “Francamente, a Dinah devia ter lhe ensinado maneiras melhores! Você devia, Dinah, sabe que devia!” acrescentou, com um olhar de censura para a gata velha e falando no tom mais zangado de que era capaz… Em seguida escalou de novo a poltrona, levando a gatinha e a lã consigo, e pôs-se a enrolar a bola de novo. Mas o trabalho não rendia muito, pois conversava o tempo todo, às vezes com a gatinha, às vezes consigo mesma. Kitty ficou sentada muito recatadamente em seu joelho, fingindo acompanhar o progresso do enovelamento, e de vez em quando esticando uma pata e tocando delicadamente a bola, como a dizer que teria prazer em ajudar, se pudesse. 
“Sabe que dia é amanhã, Kitty?” começou Alice. “Você adivinharia, se tivesse ficado na janela comigo… só que a Dinah estava fazendo sua toalete, por isso você não pôde. Fiquei olhando os meninos catarem gravetos para a fogueira — e é preciso muito graveto, Kitty! Só que ficou tão frio, e nevava tanto, que eles tiveram de parar. Não faz mal, Kitty, nós vamos ver a fogueira amanhã.” Nesse ponto Alice passou duas ou três voltas da lã em torno do pescoço da gatinha, só para ver como ficaria: isso provocou uma balbúrdia, pois o novelo rolou para o chão e metros e metros dele se desenrolaram de novo. 
“Sabe, fiquei tão zangada, Kitty”, Alice continuou assim que estavam confortavelmente instaladas de novo, “quando vi toda a travessura que você aprontou que estive a ponto de abrir a janela e jogá-la na neve! E teria sido merecido, minha traquinas querida! Que tem a dizer em sua defesa? Agora não me interrompa!” continuou, dedo em riste. “Vou lhe dizer todas as suas faltas. Número um: reclamou duas vezes enquanto a Dinah estava lavando seu rosto esta manhã. Ora, isso você não pode negar, Kitty: eu ouvi! Que está dizendo?” (fingindo que a gatinha estava falando). “A pata dela entrou no seu olho? Bem, a culpa é sua, por ficar de olhos abertos: se os fechasse, apertando bem, isso não teria acontecido. Não, não me venha com outras desculpas, ouça! Número dois: você puxou Snowdrop pelo rabo bem na hora que eu tinha posto o pires de leite diante dela! Ah, você estava com sede, é? Como sabe que ela não estava com sede também? Agora, número três: você desenrolou a lã inteirinha quando eu não estava olhando!”
“São três faltas, Kitty, e você não foi castigada por nenhuma delas. Sabe que estou acumulando todos os seus castigos para daqui a duas quartas-feiras… Imagine se tivessem acumulado todos os meus castigos!” ela continuou, mais para si mesma que para a gatinha. “Qual seria o resultado no fim de um ano? Seria mandada para a prisão, suponho, quando o dia chegasse. Ou… deixe-me ver… se cada castigo fosse ficar sem um jantar, então, quando o dia terrível chegasse, eu teria de ficar sem cinquenta jantares de uma vez! Bem, não me importaria tanto! Antes passar sem eles que comê- los!”
“Está ouvindo a neve contra as vidraças, Kitty? Soa tão agradável e suave! Como se alguém estivesse beijando a janela toda do lado de fora. Será que a neve ama as árvores e os campos que beija tão docemente? Depois ela os agasalha, sabe, com um manto branco; e talvez diga: ‘Durmam, meus queridos, até o verão voltar.’ E quando eles despertam no verão, Kitty, se vestem todos de verde, e dançam… onde quer que o vento sopre… oh, isso é muito lindo!” exclamou Alice, soltando o novelo da lã para bater palmas. “E eu gostaria tanto que fosse verdade! O que sei é que os bosques parecem sonolentos no outono, quando as folhas estão ficando castanhas.” 
“Sabe jogar xadrez, Kitty? Não, não sorria, meu bem, estou perguntando a sério. Porque, quando estávamos jogando há pouco, você observou exatamente como se entendesse; e quando eu disse ‘Xeque!’ você ronronou! Bem, foi um belo xeque, Kitty, e eu realmente poderia ter ganho, não tivesse sido por aquele cavaleiro desagradável, que veio se insinuar ziguezagueando entre minhas peças. Kitty, querida, vamos fazer de con…” E aqui eu gostaria de ser capaz de lhe contar a metade das coisas que Alice costumava dizer a partir da sua expressão favorita: “vamos fazer de conta”. Ela tivera uma discussão bastante longa com a irmã ainda na véspera, tudo porque começara com “Vamos fazer de conta que somos reis e rainhas”; e a irmã, que gostava de ser muito precisa, retrucara que isso não era possível porque eram só duas, até que Alice finalmente se vira forçada a dizer: “Bem, você pode ser só um deles, eu serei todos os outros.” E certa vez assustara realmente sua velha governanta, gritando-lhe de repente ao pé do ouvido: “Vamos fazer de conta que eu sou uma hiena faminta e você é uma carcaça!” 
Mas isto está nos desviando da fala de Alice para a gatinha. “Vamos fazer de conta que você é a Rainha Vermelha, Kitty! Sabe, acho que se você sentasse e cruzasse os braços ficaria igualzinha a ela. Vamos, tente, minha fofura!” E Alice pegou a Rainha Vermelha da mesa e a pôs em frente à gatinha como um modelo. Porém a coisa não deu certo — sobretudo, Alice disse, porque a gatinha não cruzava os braços direito. Assim, para puni-la, segurou-a diante do Espelho, para que visse o quanto estava intratável… “e se não consertar essa cara já”, acrescentou, “eu lhe faço atravessar para a Casa do Espelho. O que acharia disso?”
“Bem, se você ficar só ouvindo, sem falar tanto, vou lhe contar todas as minhas ideias sobre a Casa do Espelho. Primeiro, há a sala que você pode ver através do espelho, só que as coisas trocam de lado. Posso ver a sala toda quando subo numa cadeira… fora o pedacinho atrás da lareira. Oh! Gostaria tanto de poder ver esse pedacinho! Gostaria tanto de saber se eles têm um fogo aceso no inverno: a gente nunca pode saber, a menos que o nosso fogo lance fumaça, e a fumaça chegue a essa sala também… mas pode ser só fingimento, só para dar a impressão de que têm um fogo. Agora, os livros são mais ou menos como os nossos, só que as palavras estão ao contrário; sei porque segurei um dos nossos livros diante do espelho e eles seguraram um na outra sala.” 
“O que você acharia de morar na Casa do Espelho, Kitty? Será que lhe dariam leite lá? Talvez o leite do Espelho não seja gostoso… mas, oh, Kitty! agora chegamos ao corredor. Só se consegue dar uma espiadinha no corredor da Casa do Espelho deixando a porta da nossa sala de estar escancarada: é muito parecido com o nosso corredor, até onde se pode ver, só que adiante pode ser completamente diferente. Oh, Kitty, como seria bom se pudéssemos atravessar para a Casa do Espelho! Tenho certeza de que nela, oh! há tantas coisas bonitas! Vamos fazer de conta que é possível atravessar para lá de alguma maneira, Kitty. Vamos fazer de conta que o espelho ficou todo macio, como gaze, para podermos atravessá-lo. Ora veja, ele está virando uma espécie de bruma agora, está sim! Vai ser bem fácil atravessar…” Estava de pé sobre o console da lareira enquanto dizia isso, embora não tivesse a menor ideia de como fora parar lá. E sem dúvida o espelho estava começando a se desfazer lentamente, como se fosse uma névoa prateada e luminosa. 



A Casa do Espelho Parte II - Capítulo I - Alice Através do Espelho

No instante seguinte Alice atravessara o espelho e saltara lepidamente na sala da Casa do Espelho. A primeira coisa que fez foi verificar se havia fogo na lareira, e ficou muito satisfeita ao constatar que havia um fogo de verdade, crepitando tão alegremente quanto o que deixara para trás. “Assim vou ficar tão aquecida aqui quanto estava lá na sala”, pensou; “ou mais aquecida, porque aqui não vai haver ninguém mandando que eu me afaste do fogo. Oh, como vai ser engraçado quando me virem aqui, através do espelho, e não puderem me alcançar!” 
Em seguida começou a olhar em volta e notou que o que podia ser visto da sala anterior era bastante banal e desinteressante, mas todo o resto era tão diferente quanto possível. Por exemplo, os quadros na parede perto da lareira pareciam todos vivos, e o próprio relógio sobre o console (você sabe que só pode ver o fundo dele no espelho) tinha o rosto de um velhinho, e sorria para ela. 
“Esta sala não é tão arrumada como a outra”, Alice pensou, ao notar várias peças do jogo de xadrez caídas no chão entre as cinzas; mas no instante seguinte, com um pequeno “Oh!” de surpresa, estava de gatinhas, observando-as. As peças do xadrez estavam andando, duas a duas!
“Aqui estão o Rei Vermelho e a Rainha Vermelha”, Alice disse (num sussurro, com medo de assustá-los), “e ali estão o Rei Branco e a Rainha Branca, sentados na borda da pá da lareira… e aqui vão duas Torres, andando de braço dado… Acho que não podem me escutar”, continuou, baixando mais a cabeça, “e tenho quase certeza de que não podem me ver. Alguma coisa me diz que estou invisível…”
Nessa altura algo começou a guinchar na mesa atrás de Alice e a fez virar a cabeça bem a tempo de ver um dos Peões Brancos cair e começar a espernear. Observou-o, muito curiosa para saber o que iria acontecer em seguida. 
“É a voz da minha filha!” exclamou a Rainha Branca passando pelo Rei, apressada e com tanto ímpeto que o derrubou entre as cinzas. “Minha preciosa Lily! Minha gatinha imperial!” e começou a escalar freneticamente um lado do guarda-fogo. 
“Desatino imperial!” disse o Rei, esfregando o nariz, que machucara na queda. Tinha direito a estar um bocadinho aborrecido com a Rainha, pois estava coberto de cinzas da cabeça aos pés. 
Alice estava ansiosa por ser útil e, quando a pobrezinha da Lily estava a ponto de ter um ataque de tanto berrar, passou a mão na Rainha rapidamente e a depositou sobre a mesa junto de sua escandalosa filhinha. 
A Rainha se sentou, arquejante: a rápida viagem pelo ar lhe tirara o fôlego por completo e por um minuto ou dois nada pôde fazer senão abraçar a pequenina Lily em silêncio. Assim que recobrou um pouquinho de alento, gritou para o Rei Branco, que estava sentado entre as cinzas, mal-humorado:
“Cuidado com o vulcão!” 
“Que vulcão?” perguntou o Rei, olhando aflito para a lareira, como se julgasse aquele o lugar mais provável para encontrar um. 
“Ele… me… expeliu”, arquejou a Rainha, que ainda estava um pouco sem ar. “Trate de subir… da maneira normal… não se deixe expelir!” 
Alice observou o Rei Branco transpor lenta e laboriosamente obstáculo por obstáculo, até que finalmente disse: “Ora, nesse ritmo você vai levar horas e horas para chegar em cima da mesa. Seria muito melhor eu ajudá-lo, não é?” Mas o Rei não tomou conhecimento da pergunta: estava perfeitamente claro que não a podia ouvir nem ver. 
Diante disso Alice o apanhou com muita delicadeza e o ergueu muito mais lentamente do que erguera a Rainha, tentando não lhe tirar o fôlego. Mas, antes de o pôr na mesa, pensou que não seria má ideia dar-lhe uma espanadinha, tão coberto de cinzas estava. 
Mais tarde, contou que nunca em toda sua vida vira uma cara como a que o Rei fez ao se ver erguido e espanado no ar por uma mão invisível. Ele ficou espantado demais para gritar, mas seus olhos e sua boca foram ficando cada vez maiores, e cada vez mais redondos, até que a mão de Alice tremeu tanto com a gargalhada que ele quase caiu no chão. 
“Oh! Por favor, não faça essas caretas, meu caro!” gritou, esquecendo por completo que o Rei não a podia ouvir. “Você me fez rir tanto que mal consigo segurá-lo! E não fique com a boca tão escancarada! As cinzas vão entrar todas nela… pronto, agora acho que está apresentável!” acrescentou, enquanto lhe ajeitava o cabelo e o punha sobre a mesa ao lado da Rainha. 
O Rei tombou de costas imediatamente e assim ficou, absolutamente estático. Um pouco alarmada com o que fizera, Alice saiu pela sala para ver se conseguia encontrar um pouco de água para borrifar nele. Mas não achou nada, a não ser um tinteiro, e quando chegou de volta com ele viu que o Rei se recuperara e conversava com a Rainha em sussurros aterrorizados… tão baixinho que Alice mal pôde ouvir o que falavam. 
O Rei dizia: “Eu lhe asseguro, minha cara, fiquei gelado até as pontas das minhas suíças!” Ao que a Rainha respondeu: “Você não usa suíças.” 
“O horror daquele momento”, continuou o Rei, “eu nunca, nunca vou esquecer!” 
“Vai sim”, a Rainha disse, “a menos que faça uma anotação.” 
Alice ficou observando com grande interesse o Rei tirar um enorme bloco de anotações do bolso e começar a escrever. Ocorreu-lhe uma ideia de repente e segurou a ponta do lápis, que ultrapassava de algum modo o ombro do Rei, e começou a escrever por ele. 
O pobre Rei pareceu confuso e infeliz, lutando com o lápis por algum tempo sem dizer nada; mas Alice era forte demais para ele, que finalmente disse, resfolegando: “Minha cara! Realmente preciso arranjar um lápis mais fino. Não estou tendo o menor controle sobre este; escreve todo tipo de coisas que não pretendo…” 
“Que tipo de coisas?” perguntou a Rainha, dando uma espiada no bloco (em que Alice escrevera: “O Cavaleiro Branco está escorregando pelo atiçador. Equilibra-se muito mal.”). “Isto não é uma anotação das suas sensações!” 
Havia um livro sobre a mesa, perto de Alice, e, enquanto observava o Rei Branco (pois ainda estava um pouco apreensiva com relação a ele, e pronta a lhe jogar a tinta, caso voltasse a desmaiar), folheou suas páginas, encontrando um trecho que não conseguia ler — “é todo em alguma língua que não sei”, disse para si mesma. 
Era assim: 

PARGARÁVIO 
(Texto Invertido)

Quebrou a cabeça por algum tempo, mas por fim lhe ocorreu uma ideia luminosa. “Ora, este é um livro do Espelho, claro! E se eu o segurar diante de um espelho as palavras vão aparecer todas na direção certa de novo.” Este foi o poema que Alice leu: 

PARGARÁVIO 

Solumbrava, e os lubriciosos touvos 
Em vertigiros persondavam as verdentes; 
Trisciturnos calavam-se os gaiolouvos 
E os porverdidos estriguilavam fientes. 

“Cuidado, ó filho, com o Pargarávio prisco! 
Os dentes que mordem, as garras que fincam!
Evita o pássaro Júbaro e foge qual corisco
Do frumioso Capturandam.” 

O moço pegou da sua espada vorpeira: 
Por delongado tempo o feragonista buscou.
Repousou então à sombra da tuntumeira, 
E em lúmbrios reflaneios mergulhou. 

Assim, em turbulosos pensamentos quedava 
Quando o Pargarávio, os olhos a raisluscar, 
Veio flamiscuspindo por entre a mata brava. 
E borbulhava ao chegar!

Um, dois! Um, dois! E inteira, até o punho, 
A espada vorpeira foi por fim cravada! 
Deixou-o lá morto e, em seu rocim catunho, 
Tornou galorfante à morada. 

“Mataste então o Pargarávio? Bravo! 
Te estreito no peito, meu Resplendoroso! 
Ó gloriandei! Hosana! Estás salvo!” 
E na sua alegria ele riu, puro gozo. 

Solumbrava, e os lubriciosos touvos 
Em vertigiros persondavam as verdentes; 
Trisciturnos calavam-se os gaiolouvos 
E os porverdidos estriguilavam fientes. 


“Parece muito bonito”, disse quando terminou, “mas é um pouco difícil de entender!” (Como você vê, não queria confessar nem para si mesma que não entendera patavina.) “Seja como for, parece encher minha cabeça de ideias… só que não sei exatamente que ideias são. De todo modo, alguém matou alguma coisa: isto está claro, pelo menos…”


“Mas, oh!” pensou Alice dando um pulo de repente, “se não me apressar vou ter de passar pelo espelho de volta sem ter visto como é o resto da casa! Vou dar uma olhada no jardim primeiro.” Saiu da sala como um raio e correu escada abaixo — ou melhor, não se tratava exatamente de correr, mas de uma nova invenção dela para descer escadas de maneira rápida e fácil, como dizia para si mesma: mantinha apenas as pontas dos dedos sobre o corrimão e descia flutuando suavemente, sem sequer roçar os pés nos degraus. Atravessou o vestíbulo ainda flutuando, e teria saído porta afora do mesmo jeito se não tivesse se agarrado ao umbral. Estava ficando um pouco tonta com tanta flutuação, e sentiu-se bastante satisfeita ao se ver andando de novo da maneira natural.




quinta-feira, 4 de junho de 2015

XIV - Finalmente Pinóquio deixa de ser uma marionete - Pinóquio

Chegando à praia, Pinóquio saltou primeiro, para ajudar seu pai.
Enquanto isso, o dia já havia clareado.
Pinóquio e Gepeto ainda não haviam dado cem passos, quando viram sentados na beira da estrada dois tipos mal-encarados que estavam ali pedindo esmola.
Eram o Gato e a Raposa. Mas não se pareciam mais com os de antigamente. O Gato, de tanto se fingir cego, havia acabado por ficar cego de verdade. E a Raposa, envelhecida, sarnenta e paralítica de um lado, não tinha mais sequer a cauda. Pois é.
Aquela pequena ladra, tendo caído na miséria, viu-se obrigada, um belo dia, a vender sua lindíssima cauda a um ambulante, que a comprou para fazer um espanta-moscas.
— Oh, Pinóquio — gritou a Raposa com voz chorosa —, faça uma caridade para estes dois pobres enfermos.
— Enfermos! — repetiu o Gato.
— Adeus, tratantes! — respondeu a marionete. — Vocês me enganaram uma vez, agora não caio mais nessa.
— Acredite, Pinóquio, hoje somos realmente pobres e desgraçados!
— Desgraçados! — repetiu o Gato.
— Se estão pobres é bem-merecido. Adeus, fingidos!
E dizendo isso Pinóquio e Gepeto seguiram seu caminho. Ao fim de uma estradinha viram uma linda cabana.
— Vamos lá bater — disse Pinóquio.
— Quem é? — perguntou uma vozinha de dentro.
— Somos um pobre pai e um pobre filho, sem pão e sem abrigo — respondeu a marionete.
— Rodem a chave, que a porta abre — disse a mesma vozinha.
Pinóquio virou a chave, e a porta abriu-se.
— Estou aqui em cima!
Pai e filho olharam para o teto e viram, em cima de uma viga, o Grilo-Falante.
— Oh! Grilinho querido — disse Pinóquio educadamente.
— Agora você me chama de “Grilinho querido”, não é? Mas está lembrado de quando me atirou um martelo?...
— Tem razão, Grilinho! Pode me atirar um martelo, mas tenha pena do meu pobre pai...
— Eu vou ter pena do pai e também do filho. Mas tive que lembrá-lo de uma grave grosseria recebida, para lhe ensinar que neste mundo, sempre que possível, temos que ser delicados com todos, se queremos que nos retribuam com igual delicadeza nos dias de necessidade.
— Você tem toda a razão, Grilinho, e eu não vou esquecer a lição. Mas onde posso encontrar um copo de leite para o meu pobre pai?
— Três campos para lá deste, vive o hortelão Janjão, que cria vacas. Vá até lá e encontrará o leite que procura.
Pinóquio foi correndo até a casa do hortelão Janjão. Mas o hortelão lhe disse:
— Um copo de leite custa um tostão.
— Não tenho nem um centavo — respondeu Pinóquio constrangido e triste.
— Quem sabe podemos fazer um arranjo — disse Janjão. — Você aceitaria rodar a nora?
— E o que é nora?
— É aquela engenhoca de madeira que serve para tirar a água da cisterna, para regar as hortaliças.
— Vou tentar...
— Então, você puxa cem baldes de água para cima, e eu lhe dou em pagamento um copo de leite.
Janjão levou a marionete para a horta e lhe mostrou como rodar a nora.
Mas, antes mesmo de ter puxado os cem baldes, Pinóquio estava todo ensopado de suor, da cabeça aos pés. Nunca antes havia tido que fazer tamanho esforço.
— Até agora, quem tinha essa trabalheira — disse o hortelão — era o meu burro. Mas hoje o pobre bicho está no fim.
— Pode me levar para vê-lo? — perguntou Pinóquio.
— Com prazer.
Assim que Pinóquio entrou na estrebaria, viu um lindo burrinho deitado na palha, acabado pela fome e pelo excesso de trabalho. E debruçando-se até ele perguntou-lhe em dialeto asinino:
— Quem é você?
Ouvindo essa pergunta, o burrinho abriu os olhos moribundos e respondeu gaguejando no mesmo dialeto:
— Sou o Pa...vi...o.
E em seguida fechou os olhos e morreu.
— Pobre Pavio! — disse Pinóquio. E catando um punhado de palha enxugou uma lágrima que lhe escorria pelo rosto.
A marionete pegou seu copo de leite quase quente e voltou para a cabana.
Daquele dia em diante, ao longo de mais de cinco meses, Pinóquio continuou levantando-se de madrugada, antes de o sol nascer, para ir girar a nora: e assim ganhar aquele copo de leite que tão bem fazia à saúde do seu pai. E nem se contentou com isso, porque com o tempo aprendeu também a fabricar balaios e cestas de junco, e com o dinheiro que ganhava com eles pagava todas as despesas diárias. Entre outras coisas, construiu sozinho um carrinho para levar seu pai a passeio quando o tempo estava bom. E à noite ficava acordado até tarde exercitando-se na leitura e na escrita.
O fato é que, com seu empenho em encontrar soluções, em trabalhar e progredir, não só havia conseguido sustentar quase com conforto seu pai sempre adoentado, como, ainda por cima, havia economizado quarenta tostões para comprar uma roupinha nova.
Uma manhã disse ao pai:
— Vou até o mercado aqui perto, para comprar uma jaquetinha, um chapeuzinho e um par de sapatos.
E saindo de casa começou a correr, todo contente e alegre. De repente porém, viu um lindo caracol que vinha saindo de uma sebe.
— Eu sou empregado da Fada dos cabelos azuis — disse o Caracol.
— Onde está a minha boa Fada? — gritou Pinóquio. — O que ela está fazendo? Ainda se lembra de mim? Posso ir visitá-la?
O Caracol respondeu:
— A pobre Fada está numa cama de hospital!...
— De hospital?
— Infelizmente. Atingida por mil desgraças, adoeceu gravemente e não tem mais sequer o dinheiro para comprar um pedaço de pão.
— É mesmo?... Pobrezinha da Fada!... Se eu tivesse um milhão ia correndo levar para ela. Mas eu só tenho esses quarenta tostões que aqui estão, e estava justamente indo comprar uma roupa nova. Tome, Caracol, e vá logo levá-los para a minha boa Fada.
— E a sua roupa nova?
— Que me importa a roupa nova? Eu venderia até esses trapos que visto, para poder ajudá-la! Ande, Caracol, e depressa. E daqui a dois dias, volte aqui, que espero poder lhe dar mais alguns tostões. Até agora trabalhei para sustentar meu pai, de hoje em diante trabalharei cinco horas mais, para sustentar também a minha boa mãe. Adeus, Caracol, e espero você daqui a dois dias.
Aquela noite, em vez de ficar acordado até as dez horas, Pinóquio ficou acordado até depois da meia-noite, e em vez de fazer oito balaios de junco, fez dezesseis.
Depois foi para a cama e adormeceu. E, dormindo, pareceu-lhe ver em sonho a Fada, linda e sorridente, que, depois de dar-lhe um beijo, disse assim:
— Muito bem, Pinóquio! Graças ao seu bom coração, perdôo-lhe todas as travessuras que você aprontou até hoje. Os meninos que cuidam amorosamente dos pais nos seus sofrimentos e nas suas enfermidades merecem sempre muitos elogios e muito afeto, mesmo quando não podem ser citados como modelos de obediência e de bom comportamento. Crie juízo para o futuro e será feliz.
Nesse ponto o sonho acabou, e Pinóquio acordou de olhos escancarados.
Agora, imaginem a surpresa dele quando, ao acordar, percebeu que não era mais uma marionete de madeira, mas havia se tornado um menino como todos os outros. Deu uma olhada ao redor e, saltando da cama, encontrou já preparada uma linda roupa nova, um boné novo e um par de botinhas de couro que eram uma beleza.
Assim que se vestiu, pareceu-lhe natural meter as mãos nos bolsos, e encontrou um pequeno porta-níqueis de marfim, no qual estavam escritas estas palavras: "A Fada dos cabelos azuis devolve ao seu querido Pinóquio os quarenta tostões e muito lhe agradece por seu bom coração". Aberta a carteira, em vez dos quarenta tostões brilhavam ali quarenta moedas de ouro, novinhas em folha.
Depois foi se olhar no espelho. E pareceu-lhe ser outro. Não viu mais refletida a imagem da marionete de madeira a que estava acostumado, mas a imagem esperta e inteligente de um bonito menino de cabelos castanhos e olhos azuis, com ar radiante de felicidade. Pinóquio não sabia mais se estava de fato acordado ou se continuava sonhando de olhos abertos.
— E o meu pai onde está? — gritou. E entrando no quarto ao lado, encontrou o velho Gepeto, que, sadio, animado e de bom humor como antigamente, havia retomado sua profissão de entalhador e estava justamente desenhando uma linda moldura cheia de folhagens, flores e cabecinhas de animais. — Tire-me uma curiosidade, paizinho: como se explicam todas essas mudanças repentinas? — perguntou Pinóquio.
— Essas mudanças na nossa casa são merecimento seu — disse Gepeto.
— E o velho Pinóquio de madeira onde será que se escondeu?
— Olhe para lá — respondeu Gepeto. E indicou-lhe uma grande marionete encostada numa cadeira, com a cabeça virada para um lado, os braços pendentes e as pernas de um jeito que parecia milagre que continuasse de pé.
Pinóquio virou-se para olhá-la e disse de si para si com grande complacência:
— Como eu era engraçado quando era marionete! E como estou contente agora que me tornei um bom menino!...




XIII - O Tubarão - Pinóquio

Depois de cinqüenta minutos, o comprador disse, falando sozinho:
— A esta hora, o meu pobre burrinho manco deve estar bem afogado.
Vamos puxá-lo para cima, e fazer um lindo tambor com a sua pele.
E começou a puxar a corda com que lhe havia amarrado a perna. E puxa que puxa, viu aparecer na superfície uma marionete viva, que se debatia como uma enguia.
Surpreso, o pobre homem disse:
— E o burrinho que atirei ao mar?
— Aquele burrinho sou eu! — respondeu a marionete rindo.
— Mas como você virou uma marionete de madeira?..
— Quer saber a história verdadeira? Solte-me a perna, e eu conto.
O comprador, curioso, soltou logo o nó da corda. Pinóquio lhe contou toda a sua história, terminando assim:
— ... Então o senhor me comprou para fazer um tambor com a minha pele!
Um tambor!... Porém, caro patrão, o senhor fez as contas sem considerar a Fada...
— E quem é essa Fada?
— É minha mãe, que se parece com todas as boas mães que amam seus filhos, e nunca os perdem de vista, e cuidam deles amorosamente em qualquer desgraça, mesmo quando esses filhos, por sua falta de juízo e seu mau comportamento, mereceriam ser abandonados e entregues a si mesmos. A boa Fada mandou imediatamente um cardume infinito de peixes, e eles, acreditando que eu era um burrinho morto, começaram a me comer! E que dentadas me davam! Nunca pensei que os peixes fossem mais gulosos que as crianças!... Uns me comeram as orelhas, outros me comeram o focinho, teve quem me comeu o pescoço e a crina, quem atacou o pelame das costas...
— De hoje em diante — disse o comprador horrorizado —, juro que nunca mais vou provar carne de peixe. Eu não suportaria abrir uma pescadinha frita e dar de cara com um rabo de burro!
— Eu penso que nem o senhor — respondeu a marionete rindo. — Aliás, é bom saber que, quando os peixes acabaram de comer toda a casca asinina que me cobria da cabeça aos pés, chegaram à madeira, e foram embora cada um para um lado, sem nem virar para trás e me agradecer.
— O que eu sei é que gastei vinte centavos para comprar você e quero o meu dinheiro de volta — gritou o comprador enfurecido. — Vou levá-lo de volta para o mercado e vender a peso como lenha seca para acender a lareira.
— Pode me vender, tudo bem — disse Pinóquio. Mas ao dizer isso deu um salto e pulou na água. E afastando-se da praia gritava alegremente para o pobre comprador:
— Adeus, patrão. Se precisar de uma pele para fazer um tambor, lembre-se de mim.
Enquanto Pinóquio nadava, saiu da água e veio ao seu encontro a horrível cabeça de um monstro marinho, com a boca escancarada como um sorvedouro e três fileiras de presas era, nem mais nem menos, o mesmo gigantesco Tubarão de quem já se falou nesta história.
O pobre Pinóquio tentou evitá-lo, mudar de rumo, mas a imensa boca escancarada engoliu a pobre marionete. Pinóquio, dentro do corpo do Tubarão, não conseguia se orientar. Por todos os lados havia uma enorme escuridão, mas teve a impressão de ver lá longe uma espécie de claridade.
Pinóquio caminhou no meio da escuridão, na direção dela. Afinal, depois de muito andar, chegou. E ao chegar... encontrou uma pequena mesa posta, tendo em cima uma vela acesa numa garrafa verde, e sentado à mesa um velhinho que estava ali mastigando uns peixinhos.
Vendo isso, o pobre Pinóquio deu um grito de felicidade:
— Meu paizinho! Até que enfim o encontrei! Agora não vou deixá-lo nunca, nunca mais!
— É mesmo o meu querido Pinóquio? — O velhinho esfregou os olhos.
— Sou eu, eu mesmo! E o senhor já me perdoou, não é? Meu paizinho, como o senhor é bom!... Mas se o senhor soubesse quantas coisas deram errado para mim! Há quanto tempo o senhor está trancado aqui dentro? — perguntou enfim Pinóquio.
— Dois anos, Pinóquio, dois anos que me pareceram dois séculos. Aquela mesma tempestade que virou meu barquinho fez afundar também um navio mercante. Todos os marinheiros se salvaram, mas o nosso Tubarão, que naquele dia estava com um apetite excelente, depois de ter-me engolido, engoliu também o navio de uma só bocada...
Cuspiu só o mastro principal, porque tinha ficado entre os dentes dele que nem uma espinha. Para sorte minha, aquele navio estava carregado de carne em lata, de biscoitos, de garrafas de vinho, de passas, de queijo, de café, de açúcar, de velas e de caixas de fósforos. Com essa fartura toda pude viver dois anos. Mas hoje estou chegando ao fim das provisões, e esta vela que você vê acesa é a última que sobrou...
— Então, paizinho — disse Pinóquio —, não há tempo a perder. Temos que fugir...
— Fugir?... E como?
— Fugindo pela boca do Tubarão e nadando no mar.
— Você está certo, mas eu não sei nadar.
— E daí?... O senhor monta nos meus ombros e eu, que sou um bom nadador, levo-o são e salvo até a praia.
— Ilusões, meu menino! — respondeu Gepeto. — Como lhe parece possível que uma marionete que nem você tenha força para me levar nos ombros, nadando?
— Experimente e verá. De todo modo, se está escrito no céu que temos que morrer, pelo menos teremos o grande consolo de morrer juntos, abraçados.
Sem dizer mais nada Pinóquio tomou a vela na mão e, andando à frente para iluminar o caminho, disse ao pai:
— Venha atrás de mim e não tenha medo.
E assim atravessaram todo o corpo e o estômago do Tubarão. Mas chegando ao ponto onde começava a grande goela do monstro, acharam melhor dar uma olhada a fim de escolher o momento oportuno para a fuga.
Convém saber que o Tubarão, sendo muito velho e sofrendo de asma e de palpitações cardíacas, era obrigado a dormir de boca aberta, razão pela qual Pinóquio, debruçando-se no começo da goela e olhando para cima, conseguiu ver para lá da enorme boca escancarada um belo pedaço de céu estrelado e um lindíssimo luar.
— Este é o melhor momento para fugir — murmurou então voltando-se para o pai. — O Tubarão está dormindo e o mar está tranqüilo. Venha atrás de mim, e daqui a pouco estaremos salvos.
Sempre andando na ponta dos pés, subiram pela goela do monstro. Depois atravessaram toda a língua e passaram por cima das três fileiras de dentes. Antes de dar o grande salto, a marionete disse para o pai:
— Monte nos meus ombros e me abrace com força.
Pinóquio atirou-se na água e começou a nadar, com Gepeto nos ombros. O mar estava liso como azeite, a lua resplandecia, e o Tubarão continuava dormindo com um sono tão profundo, que não teria acordado nem com um tiro de canhão.




XII - O Circo - Pinóquio

O Homenzinho disse para Pinóquio e Pavio, com sua costumeira risadinha:
— Muito bem, garotos! Vocês zurraram muito bem!
A princípio, ele os alisou, acariciou, apalpou. Depois, sacando uma escova de ferro para cavalos, começou a escová-los cuidadosamente. E quando os viu lustrosos como dois espelhos, botou-lhes cabresto e os levou até a praça do mercado, para vendê-los.
Pavio foi comprado por um camponês, e Pinóquio foi vendido para o diretor de uma companhia de palhaços, que logo lhe gritou:
— Por acaso está achando, meu lindo burrinho, que só o comprei para lhe dar de beber e de comer? Eu o comprei para você trabalhar e me fazer ganhar muito.
Você vai comigo ao Circo e lá vou ensiná-lo a pular por dentro dos aros e a dançar a valsa levantado nas patas de trás.
O pobre Pinóquio teve que aprender todas essas coisas lindíssimas. Mas foram necessários três meses de aulas e muitas chicotadas de tirar o pêlo.
Chegou afinal o grande dia. Os cartazes nas esquinas das ruas diziam assim:
Grande espetáculo de gala. Esta noite será apresentado pela primeira vez o famoso BURRINHO PINÓQUIO conhecido como A ESTRELA DA DANÇA
Aquela noite, as arquibancadas do Circo fervilhavam de meninos, meninas e jovens de todas as idades. Acabada a primeira parte do espetáculo, o diretor da companhia, com muita solenidade, anunciou o burrinho Pinóquio. Quando ele surgiu na arena, estava com rédeas novas de couro lustroso, uma grande faixa de ouro e prata ao redor da barriga, e a cauda trançada com fitas carmesim e azul-celeste. Era um burrinho adorável!
O diretor, voltando-se para Pinóquio, disse:
— Cumprimente o respeitável público!
Pinóquio, obediente, dobrou até o chão os dois joelhos da frente, e o diretor, estalando o chicote, gritou:
— A passo!
Então o burrinho se levantou nas quatro patas e começou a girar ao redor da arena, sempre a passo. Dali a pouco o diretor gritou:
— A trote! — e Pinóquio, obediente ao comando, mudou o passo para trote.
— De carreira! — e Pinóquio começou a correr a toda velocidade. Mas, enquanto ele corria como um cavalo sem jóquei, o diretor, erguendo o braço no ar, deu um tiro de pistola.
Ao ecoar do tiro, Pinóquio, fingindo-se ferido, caiu deitado na arena.
Levantando-se do chão no meio de uma explosão de aplausos, de gritos e de palmas delirantes, levantou a cabeça e viu num camarote uma linda dama que trazia ao pescoço um pesado colar de ouro com um medalhão. No medalhão estava pintado o retrato de uma marionete.
— Aquele retrato é meu!... Aquela dama é a Fada! — disse para si mesmo
Pinóquio, reconhecendo-a. E deixando-se dominar pela alegria tentou gritar: — Fada querida!
Mas em vez dessas palavras saiu-lhe da garganta um zurro tão sonoro que todos os espectadores riram, e mais ainda riram todas as crianças.
Então o diretor, para ensiná-lo e fazê-lo entender que não é de boa educação começar a zurrar na cara do público, deu-lhe uma vergastada no nariz com o cabo do chicote.
O pobre burrinho passou pelo menos cinco minutos lambendo o nariz. Mas qual não foi seu desespero quando, olhando para cima uma segunda vez, viu que o camarote estava vazio e a Fada havia desaparecido.
Seus olhos encheram-se de lágrimas. Porém ninguém percebeu, e muito menos o diretor, o qual estalando o chicote gritou:
— Vamos, Pinóquio! Agora mostrará a esses senhores com quanta elegância sabe saltar os aros.
Pinóquio tentou duas ou três vezes. Mas cada vez que chegava diante do aro, em vez de atravessá-lo, passava por baixo. Afinal deu um salto, mas as patas traseiras ficaram presas no aro, e ele caiu que nem um saco do outro lado.
Quando se levantou, estava manco e a muito custo conseguiu voltar para a estrebaria.
— Cadê Pinóquio?! Queremos o burrinho! — gritavam as crianças na platéia.
Mas aquela noite o burrinho não voltou a aparecer.
Na manhã seguinte, o veterinário declarou que ele ficaria manco para o resto da vida.
Então o diretor disse ao moço da estrebaria:
— De que me serve um burro manco? Só se for pra comer de graça. Leve-o para a praça e venda-o.
Logo encontraram um comprador que perguntou:
— Quanto você quer por esse burrinho manco?
— Vinte liras.
— Eu tenho vinte centavos. Compro só pela pele. Estou vendo que tem uma pele bem dura, e com ela quero fazer um tambor para a banda da minha cidade.
Deixo vocês imaginarem com quanta alegria o pobre Pinóquio ouviu que estava destinado a se tornar um tambor!
O comprador, tendo pago os vinte centavos, levou o burrinho para a beira do mar e, depois de atar-lhe uma pedra ao pescoço e de amarrar-lhe na pata uma corda que trazia na mão, deu-lhe um empurrão e o atirou na água.
Pinóquio afundou logo, e o comprador, mantendo a corda apertada entre as mãos, sentou-se num recife esperando que o burrinho tivesse tempo de morrer, para depois tirar-lhe a pele.