sexta-feira, 19 de junho de 2015

A Casa do Espelho Parte II - Capítulo I - Alice Através do Espelho

No instante seguinte Alice atravessara o espelho e saltara lepidamente na sala da Casa do Espelho. A primeira coisa que fez foi verificar se havia fogo na lareira, e ficou muito satisfeita ao constatar que havia um fogo de verdade, crepitando tão alegremente quanto o que deixara para trás. “Assim vou ficar tão aquecida aqui quanto estava lá na sala”, pensou; “ou mais aquecida, porque aqui não vai haver ninguém mandando que eu me afaste do fogo. Oh, como vai ser engraçado quando me virem aqui, através do espelho, e não puderem me alcançar!” 
Em seguida começou a olhar em volta e notou que o que podia ser visto da sala anterior era bastante banal e desinteressante, mas todo o resto era tão diferente quanto possível. Por exemplo, os quadros na parede perto da lareira pareciam todos vivos, e o próprio relógio sobre o console (você sabe que só pode ver o fundo dele no espelho) tinha o rosto de um velhinho, e sorria para ela. 
“Esta sala não é tão arrumada como a outra”, Alice pensou, ao notar várias peças do jogo de xadrez caídas no chão entre as cinzas; mas no instante seguinte, com um pequeno “Oh!” de surpresa, estava de gatinhas, observando-as. As peças do xadrez estavam andando, duas a duas!
“Aqui estão o Rei Vermelho e a Rainha Vermelha”, Alice disse (num sussurro, com medo de assustá-los), “e ali estão o Rei Branco e a Rainha Branca, sentados na borda da pá da lareira… e aqui vão duas Torres, andando de braço dado… Acho que não podem me escutar”, continuou, baixando mais a cabeça, “e tenho quase certeza de que não podem me ver. Alguma coisa me diz que estou invisível…”
Nessa altura algo começou a guinchar na mesa atrás de Alice e a fez virar a cabeça bem a tempo de ver um dos Peões Brancos cair e começar a espernear. Observou-o, muito curiosa para saber o que iria acontecer em seguida. 
“É a voz da minha filha!” exclamou a Rainha Branca passando pelo Rei, apressada e com tanto ímpeto que o derrubou entre as cinzas. “Minha preciosa Lily! Minha gatinha imperial!” e começou a escalar freneticamente um lado do guarda-fogo. 
“Desatino imperial!” disse o Rei, esfregando o nariz, que machucara na queda. Tinha direito a estar um bocadinho aborrecido com a Rainha, pois estava coberto de cinzas da cabeça aos pés. 
Alice estava ansiosa por ser útil e, quando a pobrezinha da Lily estava a ponto de ter um ataque de tanto berrar, passou a mão na Rainha rapidamente e a depositou sobre a mesa junto de sua escandalosa filhinha. 
A Rainha se sentou, arquejante: a rápida viagem pelo ar lhe tirara o fôlego por completo e por um minuto ou dois nada pôde fazer senão abraçar a pequenina Lily em silêncio. Assim que recobrou um pouquinho de alento, gritou para o Rei Branco, que estava sentado entre as cinzas, mal-humorado:
“Cuidado com o vulcão!” 
“Que vulcão?” perguntou o Rei, olhando aflito para a lareira, como se julgasse aquele o lugar mais provável para encontrar um. 
“Ele… me… expeliu”, arquejou a Rainha, que ainda estava um pouco sem ar. “Trate de subir… da maneira normal… não se deixe expelir!” 
Alice observou o Rei Branco transpor lenta e laboriosamente obstáculo por obstáculo, até que finalmente disse: “Ora, nesse ritmo você vai levar horas e horas para chegar em cima da mesa. Seria muito melhor eu ajudá-lo, não é?” Mas o Rei não tomou conhecimento da pergunta: estava perfeitamente claro que não a podia ouvir nem ver. 
Diante disso Alice o apanhou com muita delicadeza e o ergueu muito mais lentamente do que erguera a Rainha, tentando não lhe tirar o fôlego. Mas, antes de o pôr na mesa, pensou que não seria má ideia dar-lhe uma espanadinha, tão coberto de cinzas estava. 
Mais tarde, contou que nunca em toda sua vida vira uma cara como a que o Rei fez ao se ver erguido e espanado no ar por uma mão invisível. Ele ficou espantado demais para gritar, mas seus olhos e sua boca foram ficando cada vez maiores, e cada vez mais redondos, até que a mão de Alice tremeu tanto com a gargalhada que ele quase caiu no chão. 
“Oh! Por favor, não faça essas caretas, meu caro!” gritou, esquecendo por completo que o Rei não a podia ouvir. “Você me fez rir tanto que mal consigo segurá-lo! E não fique com a boca tão escancarada! As cinzas vão entrar todas nela… pronto, agora acho que está apresentável!” acrescentou, enquanto lhe ajeitava o cabelo e o punha sobre a mesa ao lado da Rainha. 
O Rei tombou de costas imediatamente e assim ficou, absolutamente estático. Um pouco alarmada com o que fizera, Alice saiu pela sala para ver se conseguia encontrar um pouco de água para borrifar nele. Mas não achou nada, a não ser um tinteiro, e quando chegou de volta com ele viu que o Rei se recuperara e conversava com a Rainha em sussurros aterrorizados… tão baixinho que Alice mal pôde ouvir o que falavam. 
O Rei dizia: “Eu lhe asseguro, minha cara, fiquei gelado até as pontas das minhas suíças!” Ao que a Rainha respondeu: “Você não usa suíças.” 
“O horror daquele momento”, continuou o Rei, “eu nunca, nunca vou esquecer!” 
“Vai sim”, a Rainha disse, “a menos que faça uma anotação.” 
Alice ficou observando com grande interesse o Rei tirar um enorme bloco de anotações do bolso e começar a escrever. Ocorreu-lhe uma ideia de repente e segurou a ponta do lápis, que ultrapassava de algum modo o ombro do Rei, e começou a escrever por ele. 
O pobre Rei pareceu confuso e infeliz, lutando com o lápis por algum tempo sem dizer nada; mas Alice era forte demais para ele, que finalmente disse, resfolegando: “Minha cara! Realmente preciso arranjar um lápis mais fino. Não estou tendo o menor controle sobre este; escreve todo tipo de coisas que não pretendo…” 
“Que tipo de coisas?” perguntou a Rainha, dando uma espiada no bloco (em que Alice escrevera: “O Cavaleiro Branco está escorregando pelo atiçador. Equilibra-se muito mal.”). “Isto não é uma anotação das suas sensações!” 
Havia um livro sobre a mesa, perto de Alice, e, enquanto observava o Rei Branco (pois ainda estava um pouco apreensiva com relação a ele, e pronta a lhe jogar a tinta, caso voltasse a desmaiar), folheou suas páginas, encontrando um trecho que não conseguia ler — “é todo em alguma língua que não sei”, disse para si mesma. 
Era assim: 

PARGARÁVIO 
(Texto Invertido)

Quebrou a cabeça por algum tempo, mas por fim lhe ocorreu uma ideia luminosa. “Ora, este é um livro do Espelho, claro! E se eu o segurar diante de um espelho as palavras vão aparecer todas na direção certa de novo.” Este foi o poema que Alice leu: 

PARGARÁVIO 

Solumbrava, e os lubriciosos touvos 
Em vertigiros persondavam as verdentes; 
Trisciturnos calavam-se os gaiolouvos 
E os porverdidos estriguilavam fientes. 

“Cuidado, ó filho, com o Pargarávio prisco! 
Os dentes que mordem, as garras que fincam!
Evita o pássaro Júbaro e foge qual corisco
Do frumioso Capturandam.” 

O moço pegou da sua espada vorpeira: 
Por delongado tempo o feragonista buscou.
Repousou então à sombra da tuntumeira, 
E em lúmbrios reflaneios mergulhou. 

Assim, em turbulosos pensamentos quedava 
Quando o Pargarávio, os olhos a raisluscar, 
Veio flamiscuspindo por entre a mata brava. 
E borbulhava ao chegar!

Um, dois! Um, dois! E inteira, até o punho, 
A espada vorpeira foi por fim cravada! 
Deixou-o lá morto e, em seu rocim catunho, 
Tornou galorfante à morada. 

“Mataste então o Pargarávio? Bravo! 
Te estreito no peito, meu Resplendoroso! 
Ó gloriandei! Hosana! Estás salvo!” 
E na sua alegria ele riu, puro gozo. 

Solumbrava, e os lubriciosos touvos 
Em vertigiros persondavam as verdentes; 
Trisciturnos calavam-se os gaiolouvos 
E os porverdidos estriguilavam fientes. 


“Parece muito bonito”, disse quando terminou, “mas é um pouco difícil de entender!” (Como você vê, não queria confessar nem para si mesma que não entendera patavina.) “Seja como for, parece encher minha cabeça de ideias… só que não sei exatamente que ideias são. De todo modo, alguém matou alguma coisa: isto está claro, pelo menos…”


“Mas, oh!” pensou Alice dando um pulo de repente, “se não me apressar vou ter de passar pelo espelho de volta sem ter visto como é o resto da casa! Vou dar uma olhada no jardim primeiro.” Saiu da sala como um raio e correu escada abaixo — ou melhor, não se tratava exatamente de correr, mas de uma nova invenção dela para descer escadas de maneira rápida e fácil, como dizia para si mesma: mantinha apenas as pontas dos dedos sobre o corrimão e descia flutuando suavemente, sem sequer roçar os pés nos degraus. Atravessou o vestíbulo ainda flutuando, e teria saído porta afora do mesmo jeito se não tivesse se agarrado ao umbral. Estava ficando um pouco tonta com tanta flutuação, e sentiu-se bastante satisfeita ao se ver andando de novo da maneira natural.




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